Prioritarismo

Prioritarismo

O prioritarismo é uma teoria ética segundo a qual devemos melhorar a situação de todos, mas especialmente daqueles que estão em pior situação. De acordo com algumas versões do prioritarismo, devemos tanto reduzir o sofrimento quanto aumentar a felicidade dos indivíduos. No entanto, fazer isso para aqueles que estão em situações piores é mais importante do que para aqueles que estão em situações melhores. De acordo com outras versões do prioritarismo, aumentar a felicidade não é importante. Deveríamos nos concentrar apenas em reduzir o sofrimento, e reduzir o sofrimento daqueles que estão em situação pior é mais importante do que reduzir o sofrimento daqueles que estão em situação melhor1.

Isso significa que se tivéssemos de escolher, ou fazer com que os indivíduos que já estão felizes se tornassem muito mais felizes, ou fazer com que os indivíduos infelizes se tornassem um pouco menos infelizes, deveríamos escolher melhorar a situação das pessoas infelizes. De acordo com o prioritarismo, isso é mais importante do que aumentar a soma total da felicidade de todos os indivíduos. Para começo de conversa, a soma de toda a felicidade não leva em conta quem está menos feliz.

Como o prioritarismo difere de outras visões

O prioritarismo difere do utilitarismo, que afirma que uma situação com maior saldo de felicidade (felicidade total menos sofrimento total) é sempre melhor do que outra com menor saldo, independentemente de tal situação melhorar ou não a condição dos indivíduos em pior situação. O prioritarismo valoriza o aumento do saldo total de felicidade, mas também leva em consideração como o sofrimento e a felicidade são distribuídos entre os indivíduos. Para o prioritarismo, é mais importante aumentar a felicidade daqueles com baixos níveis de felicidade do que daqueles com níveis mais altos de felicidade2. Isso significa que para um prioritarista, uma situação com menor saldo total de felicidade é preferível quando uma proporção maior de felicidade é alocada para o indivíduos em pior situação. Prioritaristas que se alinham com as éticas focadas no sofrimento darão prioridade à redução do sofrimento sobre o aumento do prazer, e darão prioridade à redução do sofrimento daqueles que estão nas piores posições. Se eles dão não apenas alguma prioridade, mas prioridade total à redução do sofrimento sobre a promoção do prazer, então a visão que defendem pode ser chamada de prioritarismo negativo.

O prioritarismo difere do igualitarismo, segundo o qual reduzir a desigualdade é bom ou correto3. Os prioritaristas não necessariamente aceitam isso. Essa diferença, no entanto, é principalmente teórica. Na prática, o prioritarismo e o igualitarismo costumam ter resultados semelhantes, porque agir para reduzir a desigualdade e agir para beneficiar os indivíduos que estão em pior situação geralmente têm o mesmo efeito4.

Outra posição que se assemelha ao prioritarismo é suficientismo. De acordo com o suficientismo, todos os indivíduos deveriam desfrutar de uma situação suficientemente boa. Para os suficientistas, existe um limite abaixo do qual o indivíduo tem uma vida ruim, e é mais importante garantir que todos os indivíduos alcancem ou excedam esse limite. Os suficientistas, portanto, dão prioridade aos indivíduos abaixo desse limite porque, segundo o suficientismo, é mais importante ajudar aqueles que estão abaixo do limite do que ajudar aqueles que estão acima dele. Uma vez que todos os indivíduos estão acima do limite, entretanto, os suficientistas são (em parte ou completamente) indiferentes sobre como os bens são distribuídos. Isso torna o suficientismo diferente do prioritarismo, porque o prioritarismo favorece aqueles que estão menos abastados, mesmo que todos já tenham uma vida boa5.

O prioritarismo pode ser defendido tanto a partir de posições consequencialistas (alcançar o melhor resultado) quanto a partir de posições não consequencialistas (fazer o que é certo). Prioritaristas consequencialistas focam naqueles que estão em pior situação, a fim de promover os melhores cenários possíveis e evitar os piores. Prioritaristas não consequencialistas argumentam que devemos agir para melhorar a situação daqueles que estão em pior situação simplesmente porque é a coisa certa a se fazer, independentemente das consequências reais. Na prática, entretanto, essas duas visões geralmente implicam o mesmo curso de ação.

Prioritarismo, a rejeição do especismo, e a consideração moral dos animais não humanos

O especismo (a discriminação contra membros de determinada espécie ou determinadas espécies) pode ser desafiado a partir de muitos pontos de vista éticos diferentes, como teorias de direitos, utilitarismo, igualitarismo, éticas focadas no sofrimento e visões baseadas no caráter (como as éticas de virtudes ou a ética do cuidado). No entanto, apesar do aumento das informações sobre a senciência e sobre o sofrimento dos animais, muitas pessoas continuam a defender posições especistas segundo as quais os interesses dos humanos superam os dos animais não humanos. Uma das defesas do especismo é apoiada na alegação de que, como os humanos possuem certas habilidades cognitivas superiores, seus interesses deveriam contar mais. Outras argumentam que os humanos merecem consideração especial porque podem ter certas relações de solidariedade uns com os outros que não têm com outros animais. No entanto, nem todos os humanos cumprem esses critérios (como bebês, humanos, que carecem de certas capacidades cognitivas, e pessoas sem relacionamento próximo com outras), mas isso não significa que seus interesses devam contar menos.

Tais atributos e relacionamentos não são diretamente relevantes para determinar como alguém se sente. Por isso, é difícil defender qualquer outro critério que não a senciência, isto é, a capacidade de sentir. A senciência é algo de que os animais humanos e não humanos compartilham6. Como os prioritaristas consideram a senciência o critério relevante para a consideração moral, o prioritarismo implica rejeitar as visões especistas. Um esquilo ou uma abelha podem sentir, então eles podem estar em uma situação melhor ou pior, assim como um humano ou um cachorro.

De acordo com o prioritarismo, ajudar os animais selvagens é importante não apenas porque tais animais merecem consideração moral. É mais importante ajudá-los do que ajudar outros seres sencientes, como humanos e animais de companhia, porque os animais que vivem na natureza estão em uma situação pior. Atualmente, a situação dos animais não humanos é muito pior do que a dos humanos. Isso não significa negar que muitos humanos vivem em circunstâncias terríveis por muitos motivos. No entanto, a maioria dos humanos leva uma vida muito mais feliz do que a maioria dos animais não humanos.

É possível que algumas pessoas duvidem disso. Elas podem admitir que a situação dos animais não humanos é ruim, porque isso é claro para qualquer pessoa familiarizada com tal situação, mas podem presumir que muitos humanos estão em uma situação ainda pior. No entanto, há muitas evidências contra essa suposição.

Para começar, muitos animais são usados ​​como meros recursos para benefício humano de maneiras que os prejudicam enormemente: 80 bilhões de vertebrados terrestres, entre um e 3 trilhões de peixes, e um número ainda maior de invertebrados são mortos a cada ano por humanos, em muitos casos depois de sofrer terrivelmente ao longo de suas existências em lugares como fazendas7.

Na natureza, seu destino também é frequentemente funesto: os animais selvagens são severamente afetados por doenças, condições climáticas prejudiciais, fome e sede, ferimentos e conflitos com outros animais. Além disso, as vidas da maioria dos animais são muito curtas, porque a maioria morre logo após o nascimento de circunstâncias adversas, como fome e predação. Como resultado, suas vidas tipicamente contêm mais sofrimento do que felicidade, uma vez que eles têm de experimentar o sofrimento de suas mortes, mas têm pouco tempo para ter experiências positivas8.

Implicações práticas do prioritarismo para os animais não humanos

Defender o prioritarismo significa melhorar a situação dos mais desfavorecidos, a maioria dos quais são animais não humanos, sendo que devemos começar por não prejudicá-los. Isso tem muitas consequências práticas.

Os lucros da exploração animal são insignificantes em comparação ao enorme sofrimento causado aos animais explorados e mortos. É difícil imaginar algo que seja tão contrário aos princípios do prioritarismo quanto a exploração animal: em vez de reduzir o sofrimento, aumenta-o enormemente. O prioritarismo consistente, portanto, requer que rejeitemos essas práticas adotando um estilo de vida vegano.

No entanto, adotar o prioritarismo de maneira consistente tem outras implicações. Embora o veganismo tenha um impacto positivo sobre os animais e seja consistente com o prioritarismo, o prioritarismo exigiria que também trabalhássemos para incentivar outras pessoas a se tornarem veganas. O prioritarismo também implica que devemos tentar reduzir o especismo tanto quanto possível. Isso ajudará não só os animais prejudicados pelos humanos, mas também os animais selvagens que vivem em condições difíceis e também precisam da nossa ajuda.

Nesse sentido, é importante notar que o prioritarismo não apenas implica que devemos ajudar os animais não humanos, mas que devemos fazê-lo independentemente de os humanos serem ou não os causadores do seu sofrimento. Seria inconsistente focar apenas em animais que sofrem de exploração humana, quando muitos outros sofrem natureza também. Isso é um forte argumento para ajudar os animais na natureza sempre que for possível fazê-lo sem resultar em um impacto negativo geral.

Existem outras razões para focar em ajudar os animais. Os animais não humanos recebem muito pouca atenção e as causas humanas recebem muito mais. Essas duas considerações tornam a ajuda aos animais não humanos mais importante em termos de ter um impacto maior do que contribuir com o trabalho que já está sendo feito para a maioria das outras causas. Mas essas não são as razões pelas quais os defensores do prioritarismo priorizam os animais não humanos. O prioritarismo prescreveria ajudá-los de qualquer maneira, por causa de sua situação extremamente ruim. Mesmo que nossos recursos pudessem fazer uma diferença positiva maior nas vidas dos humanos, é mais importante ajudar os animais se eles estão em uma situação pior (o prioritarismo teria a implicação oposta se os humanos estivessem em uma situação pior).

Em resumo, podemos concluir que o prioritarismo tem consequências importantes ao considerar os interesses dos animais não humanos. Nesse aspecto, suas consequências se assemelham às do igualitarismo, embora as razões sejam diferentes. Muitas outras visões da ética também podem ter consequências semelhantes, mas essas duas teorias nos dão razões adicionais para priorizar ajudar os animais não humanos devido ao quão ruim é sua situação.


Leituras adicionais

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Notes

1 Holtug, N. (2006) “Prioritarianism”, in Holtug, N. & Lippert-Rasmussen, K. (eds.) Egalitarianism: New essays on the nature and value of equality, Oxford: Oxford University Press, pp. 125-156.

2 McCarthy, D. (2006) “Utilitarianism and prioritarianism I”, Economics and Philosophy, 22, pp. 335-363; (2008) “Utilitarianism and prioritarianism II”, Economics and Philosophy, 24, pp. 1-33. Tännsjö, T. (2015) “Utilitarianism or prioritarianism?”, Utilitas, 27, pp. 240-250 [acessado em 12 de maio de 2021].

3 Parfit, D. (1995) Equality or priority, Kansas: University of Kansas; Porter, T. (2012) “In defence of the priority view”, Utilitas, 24, pp. 349-364.

4 Segundo os igualitaristas, reduzir a desigualdade importa, mas não é a única coisa que importa. Outras coisas, como a redução do sofrimento ou a promoção do saldo total de felicidade menos o sofrimento, são importantes para os igualitaristas. Do contrário, eles prefeririam uma situação em que todos fossem igualmente infelizes, em comparação com outra na qual todos fossem muito felizes, mas com alguma desigualdade, e nenhum igualitarista aceita isso. Portanto, na prática, o prioritarismo e o igualitarismo costumam ter consequências muito semelhantes. Embora os prioritaristas argumentem que o que importa não é o quão igual ou desigualmente as coisas positivas e negativas são distribuídas entre os indivíduos, na prática é comum que a redução da desigualdade seja o resultado de esforços para ajudar os mais desfavorecidos.

5 See Crisp, R. (2003) “Equality, priority, and compassion”, Ethics, 113, pp. 745-763. O suficientismo é defendido em Frankfurt, H. (1987) “Equality as a moral ideal,” Ethics, 98, pp. 21-43; e criticado em Casal, P. (2006) “Why sufficiency is not enough”, Ethics, 116, pp. 296-326.

6 Ver em particular Holtug, N. (2007) “Equality for animals”, in Ryberg, J.; Petersen, T. S. & Wolf, C. (eds.) New waves in applied ethics, Basingstoke: Palgrave Macmillan, pp. 1-24.

7 Ritchie, H. & Roser, M. (2019 [2017]) “Meat and dairy productions”, Our World in Data, November [acessado em 4 de junho de 2021]. Mood, A. & Brooke, P. (2019) “Fish count estimates”, Fishcount.org.uk [acessado em 4 de junho de 2021].

8 Tomasik, B. (2019 [2009]) “How many wild animals are there?”, Essays on Reducing Suffering, Aug 07 [accessed on 4 June 2021]. Animal Ethics (2020) Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues, Oakland: Animal Ethics [acessado em 4 de junho de 2021].