Um exemplo prático da oposição entre ambientalismo e consideração pelos animais: a matança ambientalista de javalis e javaporcos no Brasil

Um exemplo prático da oposição entre ambientalismo e consideração pelos animais: a matança ambientalista de javalis e javaporcos no Brasil

27 Jan 2021

Introdução

A consideração pelos animais e o ambientalismo são frequentemente confundidos. Muitas pessoas acreditam, por exemplo, que o ambientalismo é uma posição que tem como meta garantir o bem dos animais selvagens. Contudo, essa visão é equivocada. A visão que se preocupa diretamente com o bem dos animais enquanto indivíduos capazes de sofrer e desfrutar é a ética centrada na senciência. É essa visão que buscará, por exemplo, deixar o meio ambiente da maneira que mais beneficie os animais ali inseridos. Já o ambientalismo é caracterizado justamente pelo oposto: sua meta é manter o meio ambiente de determinada maneira mesmo que isso resulte em algo pior para os animais afetados. Isso é assim porque, no ambientalismo, o que é valorizado em si são determinadas entidades não sencientes (como espécies e ecossistemas), e não os animais enquanto indivíduos capazes de sofrer e desfrutar1.

A não compreensão do que realmente é defendido pelo ambientalismo conduz muitas pessoas (dentre elas, vários defensores dos animais) a apoiarem medidas ambientalistas que normalmente resultam em uma grande quantidade de mortes e de sofrimento para os animais. Essas pessoas normalmente acreditam que, apesar de essas medidas prejudicarem os animais em alto grau, foram escolhidas porque qualquer outra opção disponível resultaria em um sofrimento e quantidade de mortes ainda maior para os animais em longo prazo. Contudo, como mencionado antes, essa seria uma preocupação de uma ética centrada na senciência, e não, a preocupação do ambientalismo. No ambientalismo, o bem dos animais não é normalmente visto como importante em si, mas, importante apenas enquanto meio para alcançar as metas ambientalistas. Isto é, o ambientalismo será contra prejudicar os animais se prejudicá-los atrapalhar o alcance dessas metas (como, por exemplo, quando o ambientalismo protege animais que pertencem à espécies ameaçadas de extinção) mas, não se oporá a prejudicar os animais quando fazê-lo não conflitar com as metas ambientalistas (por essa razão, defende a exploração animal, desde que feita de maneira sustentável, por exemplo), e defenderá prejudicar os animais quando fazê-lo ajudará a atingir tais metas (como nos casos onde promove a experimentação animal para testar o efeito de produtos químicos no ambiente e quando promove a matança de animais membros de espécies classificadas como invasoras, discutida a seguir).

A matança ambientalista de javalis e javaporcos no Brasil

O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), através das Instruções Normativas nº 3, de 31 de janeiro de 2013 e nº 12, de 25 de março 2019, regulamenta a caça aos javalis e javaporcos. Em 2017, o Ministério do Meio Ambiente, junto com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, publicou o “Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali (Sus scrofa) no Brasil“ (daqui para frente abreviado como “Plano Nacional”), como parte da Estratégia Nacional sobre Espécies Exóticas Invasoras, instituída pela Portaria nº 3, de 16 de agosto de 2018. Essas ações são previstas na Política Nacional da Biodiversidade (Decreto nº 4.339/2002).

As justificativas oferecidas para a matança no Plano Nacional são, ou de cunho antropocêntrico, ou de cunho ambientalista. Por exemplo, é dito que:

O javali é responsável por uma série de prejuízos tanto para a biodiversidade quanto para a agropecuária. Estes animais, além de ocasionarem danos à flora e fauna nativa […] são responsáveis por prejuízos na produção agrícola e representam um grave risco sanitário para a atividade pecuária2.

Uma justificativa ambientalista comum a favor da matança de animais membros de espécies classificadas como invasoras é o fato de eles consumirem plantas raras ou plantas nativas. Por exemplo, no Plano Nacional é afirmado que:

Incluída na dieta do Sus scrofa está o consumo de espécies nativas da flora como a araucária (Araucaria angustifolia), guamirim (Myrcia multiflora) e imbuia (Ocotea porosa), além de uma infinidade de culturas agrícolas, especialmente milho […] as espécies Araucaria angustifolia e Ocotea porosa são listadas na Lista Nacional Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção3.

Juntamente com esse tipo de justificativa ambientalista, são oferecidas razões antropocêntricas, como o fato de eles consumirem milho das lavouras.

Outra das justificativas oferecidas para a matança dos javalis é a possibilidade de eles transmitirem doenças para os animais domesticados. Isso poderia dar a entender que os proponentes de tal posição estão preocupados diretamente com o bem dos animais domesticados. Contudo, a sua preocupação é o oposto disso: se esses animais domesticados ficarem doentes, isso prejudicará a exploração que os humanos realizariam sobre eles. Por exemplo, na página 37 do Plano Nacional, lê-se:

Outro problema socioeconômico para produção animal são os riscos de epidemia, já que javalis podem ser reservatórios de doenças que podem afetar a suinocultura. […] Os riscos de epidemias e suas consequências econômicas, tais como quebra da indústria de carne, podem também se tornar um problema social devido a quantidade de pessoas dependente diretamente deste setor produtivo, em especial no sul do Brasil4.

Além das metas antropocêntricas, o Plano Nacional enfatiza outras metas ambientalistas. Por exemplo, no Plano lê-se:

“O Programa Global de Espécies Invasoras – GISP, da IUCN, reforça ainda que o objetivo final para planos como esse devem ser a conservação e restauração dos ecossistemas […] como por exemplo conservação dos porcos selvagens pertencentes à fauna brasileira, conhecidos popularmente como cateto (Pecari tajacu) e queixada (Tayassu pecari) […] Vale destacar que a queixada (Tayassu pecari) é uma espécie ameaçada de extinção, classificada na categoria de risco Vulnerável”5.

Nessa passagem, fica evidente que, de um ponto de vista ambientalista, aquilo que é valorizado em si é que exista em determinado local apenas os membros das espécies nativas. O que é classificado pelos ambientalistas como uma “ameaça à fauna nativa” pode ser simplesmente o fato de os animais membros de espécies não nativas entrecruzarem-se com membros das espécies nativas, dando origem a descendentes híbridos que não possuem as características admiradas pelos ambientalistas. Por exemplo, na resolução do Ibama nº 12, de 25 de março 2019 as espécies exóticas invasoras são consideradas nocivas porque “ameaçam a biodiversidade, homogeneízam ambientes, geram híbridos com outras espécies nativas podendo levá-las a extinção”6.

Como mencionado, por vezes defensores dos animais apoiam as medidas ambientalistas por pensarem que a preocupação em manter apenas os membros da fauna nativa seria uma preocupação indireta à meta de alcançar um estado de coisas com menos sofrimento e mortes dos animais. Contudo, na verdade, acontece o contrário: na visão ambientalista, é o bem dos animais que é geralmente visto como possuindo um valor meramente instrumental ao alcance da meta final de preservar certas entidades não sencientes (por exemplo, as espécies nativas). Ou seja, em tal visão, os animais não humanos serão beneficiados se isso for necessário para alcançar as metas ambientalistas. Igualmente, quando a chacina dos animais for necessária para se atingir as metas ambientalistas (ou até mesmo quando ela não for necessária, mas não atrapalhar o alcance daquelas metas) o ambientalismo aprovará a chacina.

Nas páginas 44 a 46, o Plano Nacional faz uma comparação entre as vantagens e desvantagens dos vários métodos de controle dos membros de espécies invasoras. Dentre os métodos avaliados, estão: armadilha de captura viva (gaiolas, curral e redes); perseguição (com e sem cães); controle biológico (introdução de predadores); tiro em espera com ceva (isca); tiro sem ceva; tiro aéreo; laço; técnica de Judas (que envolve o uso de rádio colar em alguns indivíduos para que sirvam de guia para os caçadores encontrarem outros javalis) e veneno. Na página 46, é destacado que os métodos do laço e do veneno são proibidos no Brasil, mas são citadas como vantagens do método do veneno: “aceito na comunidade rural; rápido e efetivo controle; e relativamente barato”. Quando o Plano Nacional fala nas vantagens e desvantagens de cada método, o que tem em mente são interesses humanos ou metas ambientalistas, e não, o que seria menos pior para os animais. Por exemplo, cita como uma desvantagem do método de controle de fertilidade que “doenças podem ser passadas a fauna nativa e a animais domésticos e podem gerar implicações comerciais internacionais”.

A retórica ambientalista pode dar a entender que tem como preocupação o bem dos animais, como quando tenta-se justificar a matança citando os danos que os animais que serão mortos causam a outros animais. Por exemplo na página 21 do Plano Nacional é citada a predação que os javalis praticam sobre membros de outras espécies: “a predação pode ser de pequenos animais e ovos, por exemplo, existem relatos de predação de capivara (filhote) e ovos de jacaré por porcos-monteiros no Pantanal”. Contudo, a preocupação ambientalista aqui não é com o sofrimento e as mortes envolvidos no processo de predação (algo que alguém que realmente considera os animais estaria preocupado), e sim, porque tratam-se de espécies que os ambientalistas tem como meta preservar. Ora, se a preocupação fosse o sofrimento e as mortes envolvidos no processo de predação, essa preocupação estaria igualmente presente em relação à predação causada sobre animais que não são membros de espécies ameaçadas de extinção, incluindo membros de espécies classificadas como invasoras.

Criando consciência da oposição entre ambientalismo e consideração pelos animais

A visão predominante nos órgãos governamentais que lidam com questões ambientais é apenas um reflexo da visão especista predominante na sociedade em geral. Como vimos, as metas que esses órgãos visam atingir são, ou fomentar interesses antropocêntricos (como o interesse em explorar os animais não humanos, por exemplo), ou fomentar os valores ambientalistas (preservar determinadas entidades não sencientes). Dentre essas metas, não está garantir o bem dos animais não humanos. Contudo, não há que necessariamente ser assim. Em uma sociedade onde os animais não humanos tivessem os seus interesses plenamente considerados, continuaria sendo necessária a existência de órgãos governamentais que regulamentassem questões referentes ao meio ambiente. Contudo, a meta seria muito distinta: envolveria investigar em que estado deixar o meio ambiente, de modo que fosse alcançada a melhor situação possível para os seres sencientes.

Várias organizações de defesa animal começarem a perceber que o ambientalismo tem ideais conflitantes com a consideração pelos animais. Por exemplo, em Junho de 2020, a ONG Olhar Animal deu andamento a uma Ação Civil Pública contra o Ibama na Justiça Federal de SP, buscando a invalidação das Instruções Normativas que regulamentam a caça dos javalis e javaporcos. Em resposta, o IBAMA afirmou que o posicionamento da ONG contra a caça deve-se a uma “postura pessoal e sentimental”. A Olhar Animal comentou que essa resposta evidencia o desconhecimento, por parte do Ibama, do debate teórico sobre a consideração moral dos animais não humanos no campo da ética, que existe pelo menos há cinco décadas. Segundo a Olhar Animal:

“A legislação vigente lamentavelmente reflete a mentalidade especista expressada pelo Ibama e que é predominante na gestão das políticas públicas ambientais. Para buscar melhoras na condição dos animais, temos que recorrer a ferramentas jurídicas majoritariamente especistas, pois é o que há disponível. […] A atuação do movimento de defesa dos animais junto às casas legislativas é fundamental para mudar este panorama”.

A falta de ferramentas jurídicas não especistas mostra a importância de as organizações de defesa animal enfatizarem a argumentação antiespecista. Além de criar consciência por parte da sociedade de que a consideração pelos animais e o ambientalismo partem de ideais opostos, essa argumentação, em âmbito jurídico, pode abrir precedentes que poderão ser utilizados em defesa dos animais em outros casos. Por exemplo, em outro caso, a ONG Olhar Animal foi admitida como amicus curiae no processo ajuizado pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal que buscava a libertação da elefanta Bambi e sua transferência do zoológico onde se encontrava para um santuário. A ONG Olhar Animal declarou que:

No pedido de habilitação, o advogado da Olhar Animal, Marcel Fiorelli Fernandes, encaminhou uma inédita exposição de argumentos centrados na consideração moral dos animais enquanto seres sencientes, articulando-os com a legislação brasileira vigente e estabelecendo analogias entre o tratamento dado a diferentes espécies de seres sencientes, em especial entre humanos e a elefanta Bambi.

Poucos meses depois que a Justiça autorizou a transferência de Bambi para um santuário, o promotor Wanderley Trindade solicitou que ela fosse trazida de volta para o zoológico, argumentando que “é do interesse da população de Ribeirão Preto e da região metropolitana a sua permanência do zoológico Fábio Barreto”. Em resposta, a Olhar Animal organizou uma petição, que foi assinada por diversas outras organizações, solicitando a permanência de Bambi no santuário. Nessa petição, a Olhar Animal citou o parecer da Subprocuradora-Geral da República Maria Soares Camelo Cordioli na ADI 4983, que questiona a visão ambientalista:

“….a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal e no âmbito infraconstitucional, deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilibro do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie”.

Esses exemplos sugerem que é possível desafiar as visões antropocêntrica e ambientalista, mesmo que estas sejam predominantes. O fato de ainda existirem relativamente poucas pessoas e organizações combatendo a visão ambientalista deve-se, como vimos, ao fato de a maioria das pessoas (sobretudo defensores dos animais) não perceberem o que o ambientalismo realmente propõe. Se a percepção de que a consideração pelos animais e o ambientalismo partem de fundamentos opostos e conflitantes aumentar, aumentarão também as chances de se fazer uma mudança positiva para os animais. Daí a importância de os defensores dos animais se informarem sobre essa oposição e divulgarem essa questão.

Modificando as metas de nossas ações que afetam os animais selvagens

Como vimos, muitas pessoas (talvez a maior parte delas) apoiam as medidas ambientalistas justamente por não saberem o que o ambientalismo realmente propõe. Acreditam, equivocadamente, que o ambientalismo tem como meta conseguir um mundo com menos sofrimento e mortes para os animais selvagens. Como vimos, o ambientalismo é exatamente o oposto: é centrado na preocupação em manter o meio ambiente de determinada maneira mesmo que o resultado seja muito pior, levando em conta o bem de todos os animais afetados ao longo do tempo. Contudo, a boa notícia é que aquilo que as pessoas pensam equivocadamente que o ambientalismo defende (alcançar um mundo onde haja menos sofrimento e mortes para os animais) já é defendido por outro tipo de posição, muito pouco conhecida: a ética centrada na senciência. Essa visão tem como meta alcançar um mundo onde todos os seres capazes de sofrer e desfrutar, independentemente de espécie, sejam plenamente respeitados, e que haja nesse mundo o mínimo possível de sofrimento e o máximo possível de experiências positivas para esses seres.

A prevalência da visão ambientalista, e não da ética centrada na senciência, é refletida no fato de que, quando os animais selvagens são estudados em seus ambientes naturais, normalmente são estudados enquanto membros de espécies, enquanto componentes dos ecossistemas. Não existe uma grande quantidade de estudos, por exemplo, sobre como esses animais são afetados pelos processos naturais do ponto de vista do que é melhor ou pior para eles enquanto indivíduos capazes de sofrer e de desfrutar. Felizmente, aos poucos, isso vem mudando. Por exemplo, a biologia do bem-estar é um campo de estudo proposto, que envolveria reunir conhecimentos de várias áreas distintas (como biologia, ecologia, ciência do bem-estar animal e zoologia) com o objetivo de estudar como os animais são tipicamente afetados do ponto de vista do seu bem-estar. À medida que uma visão centrada na senciência for mais difundida, a tendência é que mais estudos desse tipo surjam nessas áreas, aumentando assim a quantidade de coisas possíveis de serem feitas para ajudar os animais selvagens. Contudo, para que esse cenário vire realidade, um primeiro passo importante é os defensores dos animais saberem distinguir com clareza duas perspectivas que possuem fundamentos antagônicos: a consideração pelos animais e o ambientalismo.


Notas

1 Sagoff, M. (1984) “Animal liberation and environmental ethics: Bad marriage, quick divorce”, Osgoode Hall Law Journal, 22, pp. 297-307 [acessado em 17 de janeiro de 2021]. Rolston, H., III (1992) “Disvalues in nature”, The Monist, 75, pp. 250-278. Hargrove, E. C. (ed.) (1992) The animal rights/environmental ethics debate: The environmental perspective, Albany: State University of New York. Shelton, J.-A. (2004) “Killing animals that don’t fit in: Moral dimensions of habitat restoration”, Between the Species, 13 (4) [acessado em 2 de janeiro de 2021]. Dorado, D. (2015) El conflicto entre la ética animal y la ética ambiental: bibliografía analítica, tese de doutoramento, Getafe: Universidad Carlos III de Madrid, pp. 238-247 [acessado em 3 de janeiro de 2021]. Horta, O. (2017) “Contra a ética da ecologia do medo: por uma mudança nos objetivos de intervenção na natureza”, Ethic@, 16, pp. 165-188 [acessado em 25 de janeiro de 2021].

2 Brasil. Ministério do Meio Ambiente & Brasil. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (2017) Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali (Sus scrofa) no Brasil, Brasília: Ministério do Meio Ambiente, p. 5 [acessado em 11 de janeiro de 2021].

3 Ibid., p. 21.

4 Ibid., p. 37.

5 Ibid. p. 38.

6 Ibid. p. 3.