A fim de compreender o status jurídico dos animais não humanos, é necessário compreender o que é fundamental sobre como funcionam os sistemas legais. Basicamente, os sistemas legais em todo o mundo são dependentes da ideia de pessoas, que são detentoras de direitos. Há uma distinção na lei entre dois tipos de entidades: pessoas e não pessoas. As primeiras têm direitos, e as últimas são meras coisas que podem ser possuídas e que não têm direitos. Este é o caso independentemente do sistema legal que exista em um país.
Existem quatro tipos de sistemas legais em todo o mundo:
Há países que combinam elementos de diferentes sistemas. Os sistemas legais mais difundidos são os baseados no direito civil e no common law. Neles, há uma clara distinção feita entre seres que podem e seres que não podem demandar judicialmente e só podem ser propriedade de outros ou outras. As entidades que pertencem à primeira categoria são pessoas legais. Aquelas que pertencem à segunda categoria são objetos. Uma proteção legal significativa só pode ser concedida a entidades que têm direitos legais, e direitos apenas podem ser detidos por pessoas legais.
A lei pode conceder alguma proteção a algumas não pessoas, mas enquanto não reconhecer essas entidades como detentores de direitos, elas serão considerados coisas. Um exemplo disso é a proteção legal que obras de arte têm. Pode não ser legalmente permitido que destruamos uma obra de arte importante, mesmo se for nossa propriedade. No entanto, isso não significa que a obra de arte tenha direitos. Não tem, porque não é uma pessoa legal.
Ser uma pessoa legal implica não poder ser usada por outras como mero objeto, e, em vez disso, ter interesses que a lei deve respeitar. A proteção que obras de arte recebem não lhes é concedida com base na ideia de que as obras de arte são sujeitos com interesses, mas sim por outros fins, como proteger os interesses das pessoas legais ou comunidades de pessoas legais na continuidade da existência desse trabalho de arte.
Atualmente, em todos os países, animais não humanos são considerados na lei como não pessoas. Esta é uma consequência direta da ampla prevalência de posturas especistas. E isso tem implicações muito importantes, uma vez que significa que eles não podem ter qualquer proteção significativa e podem ser tratados como propriedade1. Isso é o que torna legalmente possível que animais não humanos sejam tratados como recursos de quase todas as formas que humanos quiserem, com algumas regulamentações limitando esse uso, porém poucas vezes o proibindo completamente se muitas pessoas o aprovam.
Por esta razão, conceder uma proteção legal significativa a animais não humanos é algo que só pode ser feita de duas formas:
(1) Mudando completamente o sistema legal, substituindo-o por um novo;
(2) Concedendo aos animais não humanos o status de detentores de direitos legais.
A primeira tarefa parece extremamente difícil de alcançar. Os defensores da proteção legal dos animais não humanos teriam muito mais facilidade ao seguirem o segundo curso de ação. Isso implica que aqueles que defendem que animais não humanos sejam protegidos por lei têm fortes razões para defender que lhes sejam concedidos direitos legais2. Dentro do atual sistema jurídico, esta é a única forma real de seus interesses serem seriamente levados em conta. Caso contrário, não haverá garantia de que haja um fim do uso de animais não humanos para qualquer uma das finalidades pelas quais seres humanos queiram explorá-los, e os animais continuarão tendo proteção negada contra a maioria dos danos que possam sofrer.
Quem defende a consideração moral de animais não humanos gostaria que eles sejam legalmente protegidos de uma forma significativa. Algumas abordagens em ética argumentam que aqueles seres que são moralmente consideráveis têm, ou deveriam ter concedidos, direitos morais (veja a seção sobre as defesas da consideração moral de animais não humanos a partir de diferentes abordagens éticas), enquanto outras abordagens negam isso, porque não acreditam que exista algo como direitos morais e acreditam que também não sejam úteis como algo fictício. No entanto, todas estas abordagens são compatíveis com o apoio a direitos legais para animais não humanos, considerando as razões explicadas acima.
Portanto, quem defende animais não humanos irá tomar parte em campanhas pelo reconhecimento de direitos para eles. Os defensores de animais podem apoiar os direitos legais para animais independentemente da sua abordagem, que pode ser direitos, igualitarista, ética das virtudes ou do cuidado, utilitarista, focado no sofrimento ou baseada em alguma outra perspectiva. A posição de que os animais devem ter direitos legais não implica necessariamente que os animais, ou os seres humanos ou qualquer outro ser, também tenham direitos morais. A alegação de que os animais devem ter direitos legais pode ser defendida por qualquer pessoa que aceite que animais não humanos devam receber proteção legal significativa.
Existem dois tipos principais de direitos com os quais a lei pode nos proteger. Um conjunto de termos que é frequentemente usado para descrevê-los é o de “direitos negativos” e “direitos positivos”. Direitos negativos são aqueles que dão aos detentores dos direitos o direito de não serem afetados negativamente de determinadas formas (por exemplo, sendo mortos ou agredidos). Os direitos positivos são aqueles que dão aos detentores de direitos o direito de serem afetados de forma positiva de certas maneiras (por exemplo, de ganhar acesso à assistência médica ou de serem assistidos se sofrerem um acidente).
Na maioria dos lugares, seres humanos desfrutam atualmente de direitos negativos e positivos. De acordo com isso, a obtenção de personalidade jurídica para animais não humanos teria consequências importantes em termos de direitos negativos e positivos3. Se os animais não humanos fossem reconhecidos como detentores de direitos legais, seu uso como recursos, que eles têm que suportar hoje em escala massiva, não seria mais permitido. Isto resultaria da concessão de direitos negativos a não serem possuídos ou usados como recurso.
Além disso, conceder a alguém direitos negativos como o direito de não ser usada como recurso significa que seus interesses devem ser levados em conta. Normalmente, quando levamos em consideração os interesses de alguém, isso significa que nos preocupamos com seu bem-estar, e nos preocupamos não apenas em não ser a causa dos seus danos, mas também em ajudar se sofrerem danos por alguma outra razão. Se houver o reconhecimento de que seres humanos têm direitos legais positivos (isto é, direitos a serem assistidos quando necessitados), então animais não humanos também devem dispor da proteção por esses direitos.
Isto implica que, quando animais não humanos estiverem em necessidade, seres humanos devem dar-lhes ajuda, mesmo se essa situação não for devido à exploração por seres humanos, mas à outras causas, naturais4. Isso já acontece na maioria dos países no caso dos seres humanos, e seria possível que animais não humanos tivessem proteção similar se tivessem um status legal diferente. Dar aos animais não humanos a proteção de que necessitam significaria conceder-lhes direitos negativos de não serem explorados e também direitos positivos de serem ajudados.
Tudo isso não significa que seja possível conceder o que seria do maior interesse de todo mundo. Muitas vezes, diferentes indivíduos têm interesses conflitantes que não podem ser satisfeitos coletivamente5. Ou seja, pode haver conflitos de interesses nos quais o que é do interesse de alguém vai contra o que é do interesse de outro indivíduo. Apesar disso, o número de direitos legais que não podem ser protegidos poderia ser reduzido ao mínimo, de modo que os interesses dos detentores de direitos legais seriam protegidos tanto quanto possível.
Isso já acontece hoje na maioria dos países no caso dos direitos dos seres humanos. Da mesma forma, alguns animais não humanos também têm interesses conflitantes, que em muitas situações não podem ser todos protegidos (como muitas vezes acontece na natureza quando interesses em sobreviver estão em conflito). Mas se animais não humanos tivessem o status de pessoas legais, seus interesses poderiam ser protegidos tanto quanto possível como vimos que acontece, idealmente pelo menos, no caso dos seres humanos.
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1 Ver, por exemplo, Tannenbaum, J. (1995) “Animals and the law: Property, cruelty, rights”, Social Research, 62, pp. 539-607; Francione, G. L. (1995) Animals, property and the Law, Philadelphia: Temple University Press; McCartney-Smith, E. (1998) “Can nonhuman animals find tort protection in a human-centered common law”, Animal Law Review, 4, pp. 173-210; Bryant, T. L. (2008) “Sacrificing the sacrifice of animals: Legal personhood for animals, the status of animals as property, and the presumed primacy of humans”, Rutgers Law Journal, 39, pp. 247-330 [acessado em 11 de novembro de 2013]; Maddux, E. A. (2012) “Time to stand: Exploring the past, present, and future of nonhuman animal standing”, Wake Forest Law Review, 47, pp. 1243-1267.
2 Feinberg, J. (1974) “The rights of animals and future generations”, in Blackstone W. (ed.) Philosophy and environmental risis, Athens: University of Georgia Press, pp. 43-78. Finsen, S. (1997) “Obstacles to legal rights for animals: Can we get there from here?”, Animal Law Review, 3, pp. i-vi. Teubner, G. (2006) “Rights of non-humans? Electronic agents and animals as new actors in politics and law”, Journal of Law and Society, 33, pp. 497-521.
3 Shue, H. (1996) Basic rights: Subsistence, affluence, and U.S. foreign policy, Princeton: Princeton University Press. Wenar, L. (2011 [2005]) “Rights”, em Zalta, E. N. (ed.) Stanford encyclopedia of philosophy, Stanford: The Metaphysics Research Lab [acessado em 12 de novembro de 2016].
4 Kirkwood, J. K. & Sainsbury, A. W. (1996) “Ethics of interventions for the welfare of free-living wild animals”, Animal Welfare, 5, pp. 235-243. Nussbaum, M. C. (2013 [2006]) Fronteiras da justiçá: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie, São Paulo: WMF Martins Fontes. Faria, C. & Paez, E. (2015) “Animals in need: The problem of wild animal suffering and intervention in nature”, Relations: Beyond Anthropocentrism, 3, pp. 7-13. Faria, C. (2016) Animal ethics goes wild: The problem of wild animal suffering and intervention in nature, Barcelona: Universitat Pompeu Fabra.
5 Ver sobre isso Sapontzis, S. F. (1987) Morals, reason, and animals, Philadelphia: Temple University Press.