Promovendo a biologia do bem-estar enquanto estudo do sofrimento dos animais selvagens

Promovendo a biologia do bem-estar enquanto estudo do sofrimento dos animais selvagens

30 Mai 2020

Os animais na natureza normalmente sofrem tremendamente de fome, exposição aos elementos e doenças evitáveis. Os programas de vacinação contra a raiva ajudaram substancialmente certos animais selvagens, mas esses programas foram projetados principalmente para proteger os humanos e os animais que convivem conosco. E se déssemos um passo adiante e tentássemos ajudar os animais selvagens por preocupação por eles mesmos?

Poderíamos causar um impacto positivo realmente enorme por meio do estudo da biologia do bem-estar. Oscar Horta, porta-voz da Ética Animal, falou sobre isso na conferência EAG 2018 em Londres. A palestra discute as seguintes questões:

• O que é o sofrimento dos animais selvagens em geral
• Por que o sofrimento dos animais selvagens é importante
• Algumas maneiras pelas quais já estamos ajudando os animais selvagens
• Por que é necessário um novo campo de pesquisa
• O que a Ética Animal está fazendo para ajudar a dar início a esse campo de pesquisa

Abaixo está uma tradução da palestra, que editamos levemente para maior clareza. Você também pode ver a palestra em inglês aqui.


Palestra

Vamos começar primeiro com um pequeno experimento. Quero que vocês pensem, somente por um segundo, em um animal selvagem. O primeiro que vem à cabeça, está bem? Entenderam? Muito bem. Voltaremos mais tarde a isso.

A ideia dessa apresentação é mostrar o que é o sofrimento de animais selvagens em geral, e em seguida ver o que estamos fazendo agora para enfrentá-lo. Temos esse objetivo agora, que é a criação de um novo campo de pesquisa, um novo campo científico chamado Biologia do bem-estar, para lidar com o sofrimento dos animais selvagens. Mas antes de eu entrar nisso, precisamos mostrar por que devemos nos preocupar com os animais selvagens em primeiro lugar. Então, o que vou fazer é, primeiro, explicar por que o sofrimento de animais selvagens é importante. Depois, apresentarei algumas maneiras pelas quais já estamos ajudando os animais selvagens e depois voltarei às razões para criar um novo campo de pesquisa.

Então, sim, o sofrimento de animais selvagens é importante. Muitas pessoas têm essa visão idílica da natureza. Acham que a natureza é um paraíso para os animais. Não é que eles pensem que durante a noite os animais se juntam e cantam canções e tudo mais, mas, por outro lado, pensam que sim, os animais estão tendo vidas boas na natureza. Infelizmente, isso não é realmente o que acontece.

Existem muitas razões pelas quais muitos animais têm, de fato, vidas muito ruins. Existem causas naturais, como condições climáticas extremas, fome e desnutrição, parasitas ou ferimentos. Muitos animais morrem devido a doenças horríveis que lhes causam sofrimento por longos períodos de tempo. Pensamos neles como se estivessem acostumados a isso, mas esse não é o caso. Eles sofrem como os humanos sofreriam. Além disso, há razões para acreditar que isso não é algo que acontece apenas com uma minoria minúscula de animais. É exatamente o contrário.

E agora quero voltar ao nosso experimento de antes. Então, eu quero perguntar a vocês, quantos de vocês pensaram em um mamífero quando pedi para pensarem em um animal selvagem? Uau, muita gente! Quantos de vocês pensaram em uma ave? Apenas duas pessoas. Réptil? Uma. Anfíbio? Uma. Um peixe? Uma. Um invertebrado? Ok, a maré está mudando, então algumas pessoas estão pensando em um invertebrado. Isso é bom. Isso mostra que estamos fazendo progresso nisso.

Agora, a pergunta mais relevante: quantos de vocês pensavam em filhotes ou em animais muito jovens? Apenas um. Então, o resto de vocês basicamente pensou em animais adultos. Mas o que acontece é que, na natureza, a maioria dos animais se reproduz tendo um grande número de filhotes. Isso acontece no caso de mamíferos: roedores podem ter centenas de filhotes. Outros animais podem ter milhares de filhotes durante a vida. Alguns podem ter algo como milhões deles. Em média, quantos desses animais vocês acham que sobreviveriam e chegariam à maturidade? É muito simples. Em média, em uma população estável, apenas um animal por progenitor sobrevive.

O que acontece com os outros animais? Eles morrem, a maioria deles logo após começar a existir. O fato é que suas mortes não são realmente mortes boas. Eles costumam morrer devido à fome. Muitos animais nunca comem. Eles começam a existir, procuram comida, nunca encontram nenhuma comida e simplesmente morrem. Outros podem ser congelados ou mortos pelo frio. Outros são comidos vivos. E isso acontece com a esmagadora maioria dos animais. Portanto, isso mostra que esse problema é realmente sério e merece mais atenção do que tem recebido até agora.

O que estamos fazendo agora para resolver isso? A maioria das coisas feitas lida com muito poucas quantidades de animais ou apenas com um animal. Então, de vez em quando, vocês podem ver na mídia casos de pessoas ajudando animais em perigo como, por exemplo, nesse caso, essa jovem corça que estava presa em um lago congelado e foi resgatada. Ou, em alguns casos, existem esforços que tentam ajudar mais animais, como existem centros para animais feridos, doentes ou animais órfãos.

Mas, no final das contas, quando consideramos quantos animais realmente estão enfrentando essas situações terríveis, parece que precisamos ir além disso. Existem alguns esforços que tentam ajudar mais animais, por exemplo com alimentadores de animais. Eles dosificam a quantidade de alimento que os animais podem obter. Eles são usados, em alguns casos, onde certas populações de animais estão ameaçadas. Pode ser porque eles estão enfrentando um inverno particularmente severo ou algo assim.

Isto é feito principalmente por razões conservacionistas, que é diferente de se importar com os próprios animais. As pessoas querem manter uma certa população ativa por razões científicas ou porque querem que os turistas vejam esses animais, mas isso é diferente de se importar com os próprios animais. Ainda assim, isso ajuda, e o conhecimento que temos sobre como lidar com situações de fome também poderia ser aplicado em outros casos.

Esforços mais ambiciosos também podem ser considerados. Existem várias outras doenças que foram pesquisadas para se aprender como erradicar melhor certas doenças de determinadas populações. Essa tem sido uma pesquisa que já está em andamento há algum tempo. Faz décadas que os cientistas começaram a trabalhar nisso e muito progresso foi feito.

A raiva foi erradicada em muitos países, no norte da Europa e em grandes áreas da América do Norte. E, novamente, a razão pela qual essa medida é conduzida, não é porque as pessoas estão preocupadas com os animais, ou porque não queremos que eles sofram essa morte horrível. Em vez disso, não querem que esses animais transmitam essas doenças aos humanos ou aos animais com os quais os humanos convivem. Mas, ainda assim, mesmo que esse não seja o objetivo que estamos tentando alcançar, ainda estão ajudando muitos animais. Embora já exista alguma pesquisa sobre isso, muito mais trabalho poderia ser realizado.

Só para explicar como isso é feito, colocam iscas com um cheiro agradável para os animais e um sabor agradável, e eles introduzem a vacina ali. Então eles os distribuem na natureza. Portanto, existem diferentes modos de se fazer isso. Um deles é com esses dosificadores. de maneira que apenas um biscoito é distribuído de cada vez, para que nenhum animal os pegue vários deles. Eles também usam helicópteros e têm caixas com doses da vacina, e apenas as distribuem como doces para os animais.

É incrível como podemos fazer coisas que realmente podem ajudar, não apenas um animal, não apenas dez animais, mas milhares de animais. E, como eu disse, os esforços atuais estão realmente preocupados apenas com os humanos. Imagine o quão mais poderíamos ajudar esses animais, se estivéssemos preocupados com os próprios animais.

Portanto, é daí que surge a necessidade de um novo campo de pesquisa. Atualmente, existem vários cursos de ação com um bom custo/benefício para lidar com o sofrimento dos animais selvagens. E, claro, um é divulgar a ideia de que os animais na natureza importam.

Isso implica primeiro, falar contra a discriminação dos animais, contra o especismo e divulgar a preocupação pelos animais em geral. Mas, então, divulgar a preocupação com os animais selvagens em particular, porque existem muitas pessoas que, embora preocupadas com o bem-estar e os direitos dos animais, nunca pensaram que os animais selvagens pudessem precisar de nossa ajuda, porque estão sofrendo por causas naturais.

Algumas organizações estão trabalhando nesse problema. Estou trabalhando na Ética Animal, e estamos distribuindo materiais para educar o público em geral, com foco principalmente nas pessoas envolvidas no meio acadêmico. Queremos também alcançar os defensores dos animais para fornecer-lhes informações sobre isso, para que eles mesmos possam continuar trabalhando e divulgando esse assunto.

Mas, ainda assim, isso é apenas uma parte da solução. Há mais coisas que são necessárias aqui. Uma delas é apoiar as intervenções que já estão sendo realizadas, como as que eu apresentei anteriormente. E depois, ajudar a criar e desenvolver novas maneiras de ajudar os animais na natureza. E é aqui que aumentar o interesse entre os cientistas das ciências da vida é fundamental. A razão para isso é que, quando você considera o trabalho que os cientistas da vida realizam, que é relacionado direta ou indiretamente ao sofrimento dos animais selvagens, o que você descobre é que não há a mínima ideia do sofrimento dos animais selvagens como tal, ou mesmo do bem-estar dos animais selvagens.

Por exemplo, quando você considera o trabalho de cientistas do bem-estar animal, eles provavelmente trabalham com animais que são explorados pelos humanos. De fato, existe um campo chamado de bem-estar dos animais selvagens. O que eles fazem é focar em animais selvagens que estão em cativeiro ou, em alguns casos, em animais selvagens que estão sendo afetados na natureza por humanos, por exemplo, pela caça,  pesca ou atividades similares. Certo? Há também outro campo, que é a conservação compassiva, e eles focam em tentar alcançar a conservação de maneiras que não prejudiquem os animais individualmente.

Portanto, todos esses campos estão relacionados ao que precisamos aqui, mas não são exatamente a mesma coisa. E então temos o campo da ciência da ecologia, que agora tem muitos subcampos. A ecologia trabalha no estudo das relações ecossistêmicas, então existe a ecologia de comunidades, a ecologia populacional, a ecologia comportamental, todos esses são campos da ciência da ecologia. Mas o que ainda não temos ainda é isso, a biologia do bem-estar ou a ecologia do bem-estar. O que é a biologia do bem-estar? Bem, ela tem sido definida como o estudo dos seres vivos em relação ao seu bem-estar positivo e negativo.

Mas, basicamente, outra maneira de entendê-la é: é apenas um estudo de como os animais se sentem em todos os tipos de situações, inclusive na natureza. Portanto, a biologia do bem-estar incluiria a ciência do bem-estar animal como a entendemos hoje. Iria além disso, porque abordaria também as situações em que os animais estão passando na natureza. Esse é um novo campo que precisamos criar. E é surpreendente que na ecologia e na ciência do bem-estar animal, não haja nenhum trabalho sobre isso. Certo?

Claramente, mesmo que apenas de um ponto de vista científico, epistêmico, se queremos saber sobre a realidade dos animais ou a realidade dos ecossistemas por aí, então o bem-estar dos animais claramente parece ser algo muito relevante. Se, além disso, não estamos apenas curiosos sobre como as coisas são, mas também estamos preocupados sobre como essas coisas são para os indivíduos em particular, parece claro que temos uma razão principal para tentar desenvolver esses novos campos.

Já existe algum trabalho acontecendo nesses campos. Há uma lista longa de publicações sobre esse tema. Mas mesmo que seja uma lista longa, não é longa o suficiente. Além disso, uma parte significativa dessa literatura é de pessoas que trabalham em filosofia, ou ética, ou em outros campos relacionados, mas não em biologia realmente. E é disso que precisamos. Precisamos de biólogas e biólogos envolvidos nisso.

Felizmente, já existem algumas pessoas envolvidas nisso. Agora estamos criando uma pequena rede de ecólogos e outros biólogos. Alguns cientistas do bem-estar animal estão começando a se interessar por isso. A perspectiva de se criar esse novo campo é realmente viável agora. Alguns anos atrás, isso poderia parecer uma ideia maluca, mas agora, não será de imediato, vai demorar um pouco, mas estamos no caminho.

O que estamos fazendo agora? Por nós, quero dizer as pessoas que estão trabalhando nesse campo em geral. Existem várias organizações trabalhando nisso. A Ética Animal é uma delas. Também há a Wild Animal Initiative e outros grupos que também estão trabalhando nisso. Em particular, no caso da Ética Animal, estamos agora realizando pesquisas sobre como novos campos científicos foram criados no passado recente. Já entrevistamos cerca de 15 cientistas em diferentes países. Principalmente biólogos, mas também cientistas do bem-estar animal, para ver quais ideias eles têm sobre isso, que tipo de intervenções eles acham que seriam promissoras de se pesquisar. Entrevistamos pessoas de diferentes países, como no Reino Unido, nos EUA, alguns na Europa também, Alemanha, Suíça, mas também na América Latina, no Brasil, no México. Então, tentamos cobrir um amplo espectro. Também estamos trabalhando na elaboração de rascunhos do que poderiam ser projetos de pesquisa, nos quais os biólogos do bem-estar poderiam trabalhar, para tornar o mais fácil possível para as pessoas interessadas fazerem esse trabalho. Também estamos trabalhando na elaboração de assuntos que alguém que dá aula de biologia poderia ensinar na universidade. O assunto se concentraria, ou no bem-estar dos animais selvagens ou incluiria a biologia do bem-estar, entre outras preocupações.

Então, sim, há muito trabalho a ser feito, mas como eu disse, o mais importante é envolver os cientistas da vida. Então, eu gostaria de ter mais tempo para falar sobre a biologia do bem-estar como tal e sobre os novos desenvolvimentos, mas pensei que seria útil primeiro falar um pouco sobre o sofrimento dos animais selvagens. Em nome de todos esses animais, novamente, quero agradecer pelo seu interesse nesse tópico.


Questões

Pergunta: Devemos nos preocupar com a extinção de animais da mesma maneira que nos preocupamos com a extinção humana? Existe uma diferença não especista entre os dois casos?

Resposta: Na verdade, se você está preocupado com os próprios animais, você não está realmente preocupado com o que acontece com a espécie como tal. Além disso, no caso dos humanos, por exemplo, suponhamos que os humanos fossem de alguma forma substituídos por outros seres que seriam indivíduos mais cuidadosos, mais inteligentes e com melhores objetivos do que os nossos. Isso seria ruim? Muitas pessoas, pelo menos entre os altruístas eficazes, diriam: “Bem, isso provavelmente seria uma coisa boa”.

Portanto, isso seria algo que teria a ver de alguma forma com razões instrumentais, mas também mostra que não estamos preocupados com as espécies como tais. Estamos preocupados com os indivíduos. E o mesmo aconteceria no caso dos animais, eu diria.

Pergunta: Especialmente em relação aos esforços de vacinação que você mencionou em sua palestra, em geral, os animais selvagens não morreriam de outra coisa, mesmo que sejam tratados com uma vacina? Isso representa algum problema para o campo do sofrimento dos animais selvagens?

Resposta: Sim, essa é uma boa pergunta. O fato é que, de fato, existem diferentes maneiras de morrer, e não é apenas com o dano da morte que estamos preocupados. De fato, existem pessoas que não acreditam no dano da morte especificamente. Mas, a maioria das pessoas pensa que, quando você morre, você perde tudo; portanto, não pode ter mais aspectos positivos em sua vida; portanto, morrer é um mal. Além disso, também há o dano do sofrimento, e algumas doenças são realmente terríveis e causam quantidades de sofrimento terríveis. Então, se pudéssemos evitar isso, valeria a pena.

Mas, além disso, essa é uma boa pergunta, porque permite apresentar realmente qual seria a melhor maneira de resolver esse problema, que seria em uma escala maior. Então, o que os biólogos do bem-estar poderiam fazer é pesquisar a quantidade de sofrimento que as diferentes relações ecossistêmicas criam em comparação com outras. Por exemplo, quando você considera a conservação de elefantes, bem, matá-los pode ser ruim para os elefantes, mas além disso há outra coisa a ser levada em consideração, que é que os elefantes comem grandes quantidades de biomassa.

Portanto, se eles não estiverem lá, essa biomassa será consumida por pequenos invertebrados que terão muitos descendentes e serão comidos por outros pequenos invertebrados, mas um pouco maiores e assim por diante. Teremos cadeias tróficas muito longas, nas quais há muito sofrimento. Portanto, não se trata apenas de criar intervenções específicas que reduzam o sofrimento, mas de estudar o panorama geral e analisar qual é a direção na qual queremos que os ecossistemas sigam, para que haja menos sofrimento.

Pergunta: Existe um risco de que a biologia do bem-estar se concentre quase inteiramente em mamíferos e aves e, nesse caso, isso mude a análise de custo-benefício da biologia do bem-estar em geral?

Resposta: Sim, essa é outra boa pergunta. Eu acho que ela se concentrará definitivamente nos vertebrados no início por várias razões. Não necessariamente no caso de toda a pesquisa que será realizada, mas certamente, o foco será nesses animais a princípio. Mas isso pode ser como o pé na porta, a maneira de realizar mais trabalhos em geral e estabelecer o nome da biologia do bem-estar como algo que é respeitado na academia, e isso nos permitirá, depois, continuar pesquisando sobre outros animais também.

Também é assim no caso dos defensores dos animais em geral, que trabalham principalmente com vertebrados, mas que agora também começam a considerar os invertebrados.