Por que o sofrimento dos animais selvagens é ignorado: entendendo nossos vieses

Por que o sofrimento dos animais selvagens é ignorado: entendendo nossos vieses

16 Jun 2025

Uma crise oculta

Literalmente quintilhões1 de animais estão sofrendo e morrendo agora mesmo na natureza, por conta de doenças, fome, sede, frio ou calor excessivos e vários outros fatores. Mesmo assim, a maioria das pessoas — incluindo aquelas que dizem se importar profundamente com animais — não dá importância a esse problema. Por quê?

Neste texto exploraremos os vieses2 que nos fazem ignorar uma das maiores fontes de sofrimento e mortes no mundo3. Entendê-los pode nos ajudar a pensar com mais clareza sobre nossas responsabilidades morais.

A escala do problema

Quando pensamos em sofrimento animal, geralmente imaginamos fazendas industriais ou laboratórios de testes. É claro, esses são problemas muito sérios. Mas a quantidade de animais na natureza é gigantesca — tão grande que é difícil de visualizá-la. Estima-se que há entre 1 e 10 quintilhões deles em um dado momento4.

Para ter uma ideia desse número, considere a comparação a seguir: se somássemos os animais explorados pelos humanos e os animais na natureza e fizéssemos uma analogia com o período de um ano, os animais usados pelos humanos representariam apenas 14 segundos do ano, enquanto os animais selvagens representariam os 364 dias, 23 horas, 59 minutos e 46 segundos restantes5.

A vasta maioria desses animais selvagens é prejudicada por processos naturais em uma base diária. Apesar dessa escala enorme, esse problema recebe muito pouca atenção. Embora o grau de negligência quanto a esse problema venha diminuindo nos últimos anos, ele ainda passa despercebido por muitos ativistas da causa animal e filósofos da área de ética animal. Isso parece ilógico quando olhamos os números. A seguir exploraremos vários vises que podem induzir a essa negligência.

Viés do status quo: por que resistimos mudar nossas crenças

Nossas mentes naturalmente resistem à mudança, seja de comportamentos, seja de crenças. Isso é conhecido como viés do status quo. Vários outros padrões mentais contribuem para essa tendência:

  • Efeito adesão: a tendência de acreditar no que a maioria das pessoas ao nosso redor acredita.
  • Justificação do sistema: a tendência de defender o sistema de crenças e comportamentos vigente
  • Viés do conservadorismo: a tendência de relutar para atualizar nossas crenças diante de novas evidências

Pergunta importante: se todos ao seu redor focam na exploração animal, o quão provável é que você pense sobre o sofrimento dos animais selvagens que decorre de processos naturais?

Negligência em relação a animais de pequeno porte

A maioria dos animais selvagens são de pequeno porte, como insetos, crustáceos e peixes. Entretanto, nossos cérebros têm a tendência de se importar mais com animais que são6:

  • Maiores em tamanho
  • Mais inteligentes (ou parecem mais inteligentes para nós)
  • Mais similares a nós emocionalmente

Isso cria um ponto cego (isto é, uma situação que não é percebida), pois a vasta maioria dos animais que sofre na natureza são exatamente aqueles com os quais naturalmente quase não nos importamos. O mesmo problema ocorre em relação à exploração animal. A esmagadora maioria dos animais explorados são camarões7, mas os ativistas raramente os mencionam.

Pergunta importante: Quando você imagina animais na natureza, pensa em animais de grande porte, como cervos, leões ou elefantes, ou em animais de pequeno porte, como insetos ou crustáceos? Sua resposta revela como esse viés funciona.

O efeito do desaparecimento da compaixão

Aqui está algo surpreendente: quanto maior uma tragédia, menos nos importamos emocionalmente com ela. Isso é chamado de efeito do desaparecimento da compaixão, que acontece, dentre outras coisas, por conta do efeito da vítima identificável: temos a tendência de nos importamos mais com indivíduos específicos do que com grupos grandes.

Exemplo: Uma notícia sobre um único animal sofrendo gera mais resposta emocional do que estatísticas sobre bilhões de animais sofrendo. Nossa compaixão tende a diminuir quando os números ficam maiores, principalmente porque nesse caso enxergamos números, e não, os muitos indivíduos que os números representam..

Pergunta importante: como você reage emocionalmente ao ouvir o relato sobre o sofrimento de um único animal e como reage quando ouve sobre o sofrimento de bilhões ou trilhões?

Dificuldade em comparar grandes quantidades

Compare 434 bilhões (a quantidade de animais mantidos como estoque para ser explorada em um determinado momento) com 1 a 10 quintilhões (a população de animais selvagens em um dado momento)8. Nossos cérebros tratam esses números como “ambos realmente grandes” em vez de reconhecer que um é astronomicamente maior que o outro. Lembre-se que, no item 2, para visualizarmos a diferença de tamanho entre eles, tivemos que fazer uma analogia com o período de um ano. Esse viés é conhecido como negligência do escopo ou insensibilidade ao alcance: nossos cérebros têm dificuldade de perceber a diferença de tamanho entre números enormes.

Heurística de disponibilidade

Nossos cérebros usam atalhos mentais para tomar decisões rápidas. Esses atalhos são chamados de heurísticas. A heurística de disponibilidade é um atalho que consiste em assumir que aquilo de que lembramos com mais facilidade são as ocorrências mais comuns. Essa heurística cria grandes problemas quando pensamos sobre os problemas que afetam os animais em geral, sobretudo quando pensamos sobre a situação dos animais selvagens.

Do que lembramos sobre a natureza: documentários sobre a natureza mostrando animais de grande porte, adultos e vivendo vidas satisfatórias

O que realmente acontece na natureza: a imensa maioria dos animais são de pequeno porte, morre quando ainda é muito jovem, e experimenta principalmente sofrimento desde o nascimento até à morte

Viés de sobrevivência

Na natureza, para cada animal que sobrevive, literalmente outros milhares ou mesmo milhões não conseguem sobreviver. Entretanto, como geralmente não temos essa informação, e como os animais que morrem logo desaparecem no ambiente, reparamos somente nos que sobrevivem. Os poucos sobreviventes se tornam nossa imagem mental da vida na natureza, e então tendemos a crer que a maioria que nasce consegue sobreviver. É como pensar que as pessoas que apostaram em uma loteria foram apenas os ganhadores. Isso é um exemplo de viés de sobrevivência.

Para refletir: se 99,99% dos animais nascidos na natureza morrem dolorosamente quando filhotes, mas só vemos os 0,01% que sobrevivem, como isso influencia nossa percepção de como é a vida dos animais que vivem na natureza?

A dedução equivocada “se humanos prejudicam, então a natureza beneficia

Outro fator que conduz muitas pessoas a acreditarem que os processos naturais têm saldo positivo para os animais é uma dedução equivocada: “se as ações humanas têm saldo negativo para os animais, então é óbvio que os processos naturais têm saldo positivo, pois não são ações humanas”. Essa dedução é equivocada porque, mesmo se as ações humanas tiverem saldo negativo para os animais, isso não quer dizer que os processos naturais tenham saldo positivo.

A visão romantizada da vida na natureza

Muitas pessoas têm uma visão romantizada irrealista sobre como é a vida na natureza. Pensam que a maioria dos animais viviam vidas predominantemente positivas antes de os humanos interferirem. Esta visão romantizada ignora muitos fatos evidentes:

  • Desastres naturais sempre mataram enormes quantidades de animais antes de os humanos surgirem
  • Doenças e fome sempre foram comuns muito antes de os humanos existirem
  • A estratégia reprodutiva que consiste em ter milhares ou milhões de filhotes, cuja vasta maioria não consegue sobreviver, está presente em espécies que são muitíssimo mais antigas do que o surgimento da humanidade

Um dos fatores que contribui para a prevalência dessa visão romantizada sobre a vida na natureza é o viés de ancoragem, que nos induz a confiarmos nas primeiras informações que recebemos sobre um assunto. As primeiras ideias que aprendemos sobre a natureza (frequentemente de livros infantis, filmes e documentários) moldam como continuamos a vê-la. Essas primeiras impressões são irrealisticamente positivas.

A tendência de tentar justificar o sofrimento natural

Quando confrontadas com a informação de que os processos naturais tendem a maximizar o sofrimento, muitas pessoas tentam justificá-lo assumindo que ele deve servir a algum propósito maior. Vários vieses contribuem para essa tendência:

  • Viés de detecção de agência: assumir que alguém está intencionalmente causando tais eventos
  • Viés teleológico: a tendência de atribuir propósito a acontecimentos que não possuem uma meta
  • Hipótese do mundo justo: assumir que o mundo é naturalmente justo

Observe que esses vieses trabalham em conjunto pois, para alguém tentar justificar um sofrimento, não basta acreditar que há um agente por trás dele: precisa também acreditar que a meta que tal agente supostamente visa alcançar é justa.

Esses vieses podem levar à conclusão de que o sofrimento natural é provavelmente “parte de um plano para um bem maior”, e que tentar diminuí-lo só vai é piorar as coisas.

Pergunta de pensamento crítico: é errado prevenir desastres naturais ou doenças naturais que matam milhões humanos, pois isso seria interferir em algum plano cósmico para um bem maior?

Um padrão duplo diante de atos e omissões

A maioria das pessoas se julga mais responsável por atos prejudiciais do que por omissões igualmente prejudiciais (ou até mesmo mais prejudiciais). Algumas pessoas chegam ao ponto de não se sentirem moralmente responsáveis em grau algum quando decidem se omitir. Tudo isso são exemplos do viés de omissão.

O viés de omissão têm influência na negligência em relação a danos decorrentes de processos naturais, pois são danos que, para que continuem a ocorrer, não é necessário que façamos nenhuma ação.

Perguntas importantes:

O que deveria importar é a origem do dano (se surgiu de práticas humanas ou de processos naturais) ou a quantidade de dano que poderíamos evitar

Para as vítimas, faz diferença a origem do dano?

Não se importar com vítimas de processos naturais, e não se importar com o modo nossas omissões prejudicam os afetados por elas, é realmente compatível com se preocupar de verdade com os afetados por nossas decisões?

A armadilha da proporção

Nossos cérebros muitas vezes focam em porcentagens em vez de números reais. Isso pode nos fazer tomar decisões muito equivocadas ao lidar com problemas de larga escala.

Exemplo:

Você preferiria?:

  • Ajudar 90% dos animais em um problema que afeta 1.000 animais (isto é, ajudar 900 animais)
  • Ajudar 0,1% dos animais em um problema que afeta 10 milhões de animais (isto é, ajudar 10.000 animais)

A armadilha da proporção faz a primeira opção parecer melhor, mesmo que a segunda ajude mais de 10 vezes mais animais.

Viés do curto prazo

Naturalmente focamos em resultados imediatos em vez de benefícios de longo prazo. Esse é um exemplo de viés do curto prazo, um tipo de viés temporal que nos inclina a dar menos importância a um evento quanto mais distante no futuro ele estiver.

Esse viés nos faz descartar soluções que podem levar tempo para se desenvolver, mas que veríamos que são claramente melhores se olhássemos para a linha do tempo completa. Esse viés inclina muitas pessoas a alegarem que a questão do sofrimento dos animais selvagens é menos importante porque as soluções em larga escala podem demorar para surgir.

Lembre-se: Muitos avanços médicos levaram décadas de pesquisa. Se só financiássemos pesquisas que mostrassem resultados imediatos, perderíamos a maioria dos grandes avanços.

O efeito bolha

Defensores dos animais frequentemente assumem que o público geral não se importará com o sofrimento dos animais selvagens porque:

  • Muitos veganos não se importam com essa questão
  • A maioria das pessoas ainda nem é vegana

Este raciocínio contém vários erros, listados a seguir.

Suposições equivocadas:

  • Que alguém precisa ser vegano para se importar com animais selvagens
  • Que veganos são mais propensos a apoiar ajudar animais selvagens
  • Que as opiniões atuais dos veganos refletem as opiniões do público geral

Um dos fatores na base dessas suposições é o efeito de falso consenso, também chamado de efeito bolha, onde presume-se que a opinião dos membros do próprio grupo reflete a opinião da maioria das pessoas.

Aceitar a proposta de ajudar animais selvagens não requer mudar o modo como alguém se alimenta ou se veste. Requer apenas apoiar pesquisas e políticas. Isso pode na verdade ser mais fácil para a maioria das pessoas de aceitar do que aceitar o veganismo.

Quando ninguém vai se importarmascara um não quero que se importem

Muitas vezes, quando alguém diz “desista, pois ninguém vai se importar com isso”, na verdade está disfarçando um “desista, pois eu não quero que ninguém se importe com isso”. Assim, vale a pena tentar investigar se uma alegada preocupação com a opinião pública é genuína ou se está mascarando uma objeção ao que foi proposto. Esse padrão pode aparecer não apenas em conversas entre duas pessoas, mas de alguém para consigo mesmo. Nesse caso, é um exemplo de viés de auto engano9.

Tentando diminuir a influência dos vieses

Mesmo quando entendemos intelectualmente esses vieses, eles não desaparecem automaticamente10. Mudar nossas reações emocionais, intuições e sentimentos instintivos requer prática e esforço consciente.

Insight chave: Assim como no desenvolvimento de qualquer outra habilidade, superar vieses requer prática consistente ao longo do tempo.

Por isso, ao pensar sobre a questão do sofrimento dos animais selvagens (ou sobre qualquer outra) pergunte-se: estou fazendo um raciocínio honesto e seguindo as conclusões desse raciocínio, mesmo que elas indiquem que eu preciso mudar o que eu pensava antes, ou estou ajeitando o raciocínio e as informações para que eu não precise mudar o que já pensava antes?

Isto é, a prática constante da honestidade intelectual já é uma maneira de tentar reduzir a influência desses vieses em nós mesmos.

Para reflexão: Vieses são algo intuitivo e ocorrem naturalmente. O que isso nos diz sobre como devemos tomar decisões morais? Será que nossas intuições são um bom guia para essas decisões?


Notas

1 National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (1996) “Numbers of insects (species and individuals)”, Smithsonian, Information Sheet Number 18 [acessado em 4 de junho de 2025]. Tomasik, B. (2019 [2009]) “How many animals are there?”, Essays on Reducing Suffering, Aug 07 [acessado em 3 de junho de 2025].

2 Para uma introdução geral aos vários tipos de vieses, ver The Decision Lab (2021) “Biases”, The Decision Lab [referencia: 4 de junio de de 2025].

3 Para mais sobre como vieses cognitivos influenciam nossas respostas ao problema do sofrimento dos animais selvagens, ver Vinding, M. (2020) “Ten biases against prioritizing wild-animal suffering”, Magnus Vinding, July 2 [acessado em 12 de junho de 2025]; Cunha, L. C. (2024a) “Vieses que inclinam a uma negligência da situação dos animais selvagens”, Senciência e ética: perguntas e respostas, 22 de abril de 2024 [acessado em 13 de junho de 2025].

4 National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (1996) “Numbers of insects (species and individuals)”, op. cit. Tomasik, B. (2019 [2009]) “How many animals are there?”, op. cit.

5 Essa comparação diz respeito à população de animais explorados e a população de animais selvagens em um dado momento. Para mais detalhes sobre essa comparação, ver Tomasik, B. (2019 [2009]) “How many animals are there?”, op. cit.

6 Sobre quais fatores biológicos nos induzem a ter mais ou ter menos empatia por certos tipos de animais, ver Miralles, A.; Raymond M. & Lecointre, G. (2019) “Empathy and compassion toward other species decrease with evolutionary divergence time”, Scientific Reports, 9, 19555 [acessado em 2 de junho de 2025].

7 Para estatísticas sobre a exploração de camarões, ver Waldhorn, D. R. & Autric, E. (2023) “Shrimp: The animals most commonly used and killed for food production”, OSF Preprints, September 08 [acessado em 12 de junho de 2025]. Para uma comparação das quantidades de cada tipo de animal explorado, ver Cunha, L. C. (2024b) “Quais problemas afetam as maiores quantidades de animais? – Um breve resumo”, Senciência e ética: perguntas e respostas, 20 de fevereiro de 2024 [acessado em 3 de junho de 2025].

8 Tomasik, B. (2019 [2009]) “How many animals are there?”, op. cit.

9 Sobre a relação entre vieses cognitivos e auto engano, ver Nicholson, A. (2007) “Cognitive bias, intentionality and self-deception”, Teorema, 26 (3), pp. 45-58 [acessado em 13 de junho de 2025].

10 Sobre como a percepção de alguns vieses já pode ser suficiente para superá-los, ver Caviola, L.; Faulmüller, N.; Everett, J. A. C.; Savulescu, J. & Kahane, G. (2014) “The evaluability bias in charitable giving: Saving administration costs or saving lives?”, Judgment and Decision Making, 9, pp. 303-315 [acessado em 1 de junho de 2025]. Sobre por que, em relação a outros vieses, isso é insuficiente para superá-los, ver Kahneman, D. (2011) Thinking, fast and slow, New York: Farrar, Straus & Giroux.