Ética do discurso

Ética do discurso

A ética do discurso é uma visão em filosofia moral e política segundo a qual devemos seguir os princípios morais que seriam mutuamente aceitáveis ​​para todos os afetados pelas consequências da aplicação de tais princípios1. Eticistas do discurso defendem a visão de que as melhores normas morais só podem ser corretamente definidas de forma intersubjetiva. Ou seja, a forma de encontrar essas normas deveria ser através do diálogo, pesando os argumentos uns contra os outros.

Segundo a ética do discurso, devemos agir de acordo com os melhores princípios com os quais podemos concordar depois de debatermos publicamente sobre as nossas opiniões morais individuais. Em um debate público desse tipo, todos os argumentos a favor e contra os diferentes pontos de vista devem ser formulados, examinados e comparados. É por meio desse processo que podemos chegar a um acordo sobre a melhor posição moral.

Como veremos a seguir, essa abordagem ética pode ter implicações profundas para todos os seres sencientes. Dado que todos eles podem ser potencialmente afetados pelas decisões que tomamos nas nossas sociedades, os seus interesses devem ser considerados nessas decisões. A ética do discurso possui essa implicação em comum com outras teorias éticas.

Condições para uma discussão justa que leve todos em conta

O diálogo deve ocorrer sob certas condições que possam garantir que os pontos de vista de todos os afetados por uma determinada decisão moral sejam adequadamente considerados. Isso requer o seguinte:

  1. O objetivo da discussão deve ser compreender os diferentes pontos de vista sobre as questões morais em jogo, compará-los uns com os outros e estarmos prontos para descartar e/ou mudar os nossos pontos de vista. O desejo de encontrar um acordo e a vontade de descartar pontos de vista que não resistem ao escrutínio devem ser as forças fundamentais que impulsionam o debate.
  2. Nenhuma visão moral pode ser deixada de fora da discussão. Qualquer acordo anterior pode ser revisto à luz de novos fatos ou novos argumentos. Nenhuma opinião ou discurso que poderia ser considerado deve ser mantido fora do debate, uma vez que a validade de uma norma moral só pode ser descartada por argumentos racionais apresentados na discussão.
  3. A discussão deve ser pública e deve envolver o maior número possível de participantes, especialmente, sempre que possível, aqueles que são afetados pelo assunto em discussão. A discussão será incompleta se houver participantes cujas perspectivas não são levadas em conta. Embora muitas vezes seja impossível incluir as vozes de todo e qualquer indivíduo que será afetado por uma norma moral, aqueles que participam devem exercer uma mudança de perspectiva empática e aceitar como válidas apenas aquelas normas com as quais aqueles que são afetados por elas concordariam.
  4. Os participantes não devem estar sujeitos a qualquer influência que não seja a do argumento mais forte. Assim, não deve haver nenhuma autoridade externa ou forças coercivas em jogo no momento da discussão.
  5. Os participantes devem aceitar e agir de acordo com o argumento mais forte, isto é, aquele que melhor resiste ao conjunto das objeções.

Incorporando os interesses dos animais não humanos na ética do discurso

De acordo com o que vimos acima, o objetivo da discussão é a produção intersubjetiva de reivindicações morais universalmente aceitáveis ​​por meio do envolvimento cívico racional, que, uma vez alcançado, deve ser aceito e seguido por todos. Isso, como explicado acima, também se estende aos indivíduos afetados pelas decisões tomadas na discussão.

Isso significa que não devemos confundir as seguintes categorias: (1) os agentes morais reconhecidos pela ética do discurso são aqueles indivíduos capazes de agir moralmente; (2) os debatedores morais são os indivíduos capazes de participar do discurso moral e; (3) os sujeitos morais são aqueles indivíduos que, independentemente de serem ou não agentes morais ou debatedores morais, ainda são passíveis de serem prejudicados moralmente2.

Participar das discussões prescritas pela ética do discurso requer considerar as necessidades dos sujeitos morais, aqueles que não podem se representar, mas que, mesmo assim, são afetados pelas decisões tomadas3. Isso inclui não somente aqueles que não podem participar do debate devido a questões logísticas, mas também aqueles que não podem participar devido à falta de competência discursiva. Ter habilidades cognitivas ou linguísticas complexas não são condições necessárias para um indivíduo ser um sujeito moral, uma vez que diferentes seres não-linguísticos ou pré-linguísticos ainda merecem tratamento moral, apesar de sua incapacidade de participar das discussões4. Em outras palavras: todos os sujeitos morais, conforme definido acima, devem ser vistos como seres moralmente consideráveis.

Isso significa que os bebês humanos ou aqueles humanos com diversidade funcional intelectual podem estar (e estão todos os dias) sujeitos a decisões tomadas pelos agentes em tais discussões, e isso requer darmos a eles a nossa consideração moral. O mesmo se aplica aos seres sencientes não-humanos, como o argumento da sobreposição das espécies indica5. Nenhuma linha divisória entre humanos e animais de outras espécies deve ser traçada no que diz respeito à sua inclusão como seres moralmente consideráveis6. Caso contrário, estaríamos aceitando uma visão moralmente injustificada, um exemplo de especismo antropocêntrico. Isso estaria em desacordo com o objetivo da ética discursiva de evitar a arbitrariedade7.

A questão aqui não é onde traçamos a linha que divide os seres que têm interesses que são moralmente consideráveis ​​e aqueles que não tem esses interesses. Em vez disso, o nosso objetivo deveria ser incluir como moralmente consideráveis todos os seres que possuem interesses. Portanto, a questão é como melhor incorporar os interesses de todos esses seres em nossas decisões.

O que implica considerar os interesses dos animais não humanos

Muitas das nossas ações e omissões afetam os animais não humanos de diversas maneiras. Isso significa que eles podem ser objetos do processo deliberativo, pois vão ser prejudicados ou beneficiados com as coisas que estão sendo discutidas e com as normas morais alcançadas nesses debates. Isso deve ser levado em conta quando refletirmos sobre se é ou não legítima a utilização de animais como recursos dos quais os humanos podem beneficiar. Considerar seriamente os interesses dos animais não humanos é incompatível com aceitar tal uso, pois ninguém aceitaria ser explorado como são os animais não humanos.

Se desconsiderarmos essa incompatibilidade, não estaremos aceitando o que a ética do discurso prescreve e estaremos deixando que as opiniões que temos previamente condicionem o nosso raciocínio. Uma abordagem imparcial que considerasse os interesses e argumentos a favor dos animais não humanos tal como consideramos os interesses e argumentos a favor dos humanos levar-nos-ia a rejeitar o especismo. Se continuarmos aceitando a exploração animal, estaremos nos recusando a descartar uma visão que teríamos de concluir que é moralmente censurável se considerássemos os argumentos de forma imparcial.

A situação é semelhante se considerarmos não apenas a exploração animal, mas também o sofrimento dos animais selvagens. O descaso pelo que acontece aos animais que estão na natureza só pode ser aceito se não levarmos a sério os seus interesses. Isso também estaria em desacordo com a ideia de incorporar os seus interesses nos princípios morais que deveríamos aceitar. Por isso, incorporar os interesses dos animais não humanos também implicaria no requerimento de tentar ajudar os animais que estão na natureza quando eles precisarem.

Além disso, essas conclusões não afetariam apenas os animais não humanos que vivem atualmente, mas também todos os seres sencientes que possam vir a existir no futuro. A quantidade desses seres pode ser várias ordens de grandeza maiores do que os que vivem hoje. Além disso, podemos concluir que isso é algo que deve afetar não apenas as nossas decisões pessoais, mas que também deve ser incorporado de forma institucionalizada nas políticas públicas e nas decisões legislativas tomadas pelos agentes relevantes nas nossas sociedades.

Mesmo que procedamos como prescreve a ética do discurso, existe o risco de que os interesses dos animais não humanos não sejam incorporados nas normas acordadas. Existe o perigo de que aqueles que participam ativamente no discurso público continuem a defender um ponto de vista especista antropocêntrico, apesar da força dos argumentos que vimos acima. Devemos ter em mente que cada participante do processo será alguém que foi socializado em uma cultura especista. Uma vez que os animais não humanos (assim como alguns humanos) não são capazes de participar nesses debates por si próprios, a formulação de normas morais relativas aos animais depende de os humanos assumirem tal responsabilidade8. Mas, é claro que é possível os humanos falharem nessa tarefa.

O que poderia ser feito para tentar evitar isso? Deveríamos insistir que os debatedores devem alargar os seus pontos de vista durante os debates para cobrir os interesses de todos os que são afetados. Podemos também tentar conceber alguma forma de abordar a necessidade de uma representação de defesa, tal como usamos para os humanos que não podem representar a si próprios, para incluir os interesses dos animais não humanos na discussão das normas morais e da legislação. Este é também um modelo para incorporarmos em nossas decisões os interesses daqueles seres que existirão no futuro (incluindo o futuro distante). Essas são formas pelas quais as normas alcançadas seriam aceitas mesmo por aqueles que não estão presentes, ou por aqueles que não têm capacidade de argumentar, sejam eles humanos ou não-humanos.


Leituras adicionais

Apel, K.-O. (1980 [1973]) Towards a transformation of philosophy, London: Routledge.

Apel, K-O. (2001) The response of discourse ethics to the moral challenge of the human situation as such and especially today, Leuven: Peeters.

Arnett, R.; Fritz, J. & Bell, L. (2009) Communication ethics literacy, California: SAGE Publications, pp. 99-115.

Benhabib, S. & Dallmayr, F. (eds.) (1990) Communicative ethics controversy, Cambridge: MIT Press.

Calhoun, C. (ed.) (1992) Habermas and the public sphere, Cambridge: MIT Press.

Chevigny, P. G. (1980) “Philosophy of language and free expression”, New York University Law Review, 55, pp. 157-194.

Chevigny, P. G. (1982) “The dialogic right of free expression: A reply to Michael Martin”, New York University Law Review, 57, pp. 920-931.

Cohen, J. L. (1995) “Critical social theory and feminist critiques: The debate with Jürgen Habermas”, dans Meehan, J. (ed.) Feminists read Habermas: Gendering the subject of discourse, New York: Routledge, pp. 57-90.

Habermas, J. (2023 [1983]) Consciência moral e ação comunicativa, São Paulo: Unesp.

Habermas, J. (1993) Justification and application: Remarks on discourse ethics, Cambridge: MIT Press

Habermas, J. (2021 [1992]) Facticidade e validade: Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia, 2ª ed. rev., Cambridge: MIT Press

Rehg, W. (1994) Insight and solidarity. The discourse ethics of Jürgen Habermas, São Paulo: Unesp.

Rehg, W. (2004) “Discourse ethics and individual conscience”, dans Gottschalk-Mazouz, N. (ed.) Perspektiven der Diskursethik, Würzburg: Königshausen & Neumann, pp. 26-40.


Notas

1 Benhabib, S. & Dallmayr, F. (ed.) (1990) Communicative ethics controversy, op. cit., p. 336.

2 Skirbekk, G. (1997) “The discourse principle and those affected”, Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, 40, p. 66.

3 Jürgen Habermas, em Facticidade e validade, define ‘aqueles afetados’ como qualquer um cujos interesses serão afetados pelas consequências da aceitação geral das normas em discussão. Habermas, J. (2021 [1992]) Facticidade e validade: Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia, 2ª ed. rev., op. cit.

4 Crelier, A. (2016) “La ética del discurso y los derechos de los animales no discursivos”, Erasmus: Revista para el diálogo intercultural, 18 (2), p. 13 [accessed on 2 August 2023]

5 Skirbekk, G. (1997) “The discourse principle and those affected”, op. cit., p. 65

6 Hanssen, B. L. (2001) “Ethics and landscape: Values and choices”, Ethics, Place & Environment: A Journal of Philosophy & Geography, 4, pp. 246-252.

7 Ibid.

8 Isso seria semelhante ao que foi feito no passado para proteger outros seres humanos vulneráveis ​​e/ou sem voz. Mendieta, E. (2010) “Interspecies cosmopolitanism”, Philosophy Today, 54, suppl., pp. 208-216.

9 Skirbekk, G. (1997) “The discourse principle and those affected”, op. cit., p. 67.