Dia 26 de março é o Dia Mundial pelo Fim da Pesca (DMFP), que foi criado em 2017 na Suíça pela associação Pour l’Égalité Animale (PEA) —Pela Igualdade Animal— e continua desde então a ser realizado todos os anos com a participação de muitas organizações de defesa animal ao redor do mundo.
A pesca é uma das atividades que mais causa mortes de animais. Embora não se saiba exatamente quantos animais são mortos (pois seus números são medidos em toneladas), é estimado que, em nível global, anualmente sejam mortos1:
(1) Entre 787 bilhões e 2,3 trilhões de peixes capturados diretamente no mar;
(2) Entre 51 bilhões e 167 bilhões de peixes criados em fábricas de peixes;
(3) Entre 255 bilhões e 604 bilhões de decápodes (camarões, siris, caranguejos e lagostas por exemplo) criados em fábricas. Observe que esses dados não incluem os decápodes capturados diretamente no mar, que são uma quantidade gigantesca.
Somando-se esses números, a estimativa é a de que a quantidade de animais mortos pela pesca ou em fábricas de exploração de animais aquáticos anualmente em nível global esteja entre 1,5 e 4,1 trilhões.
Para termos uma ideia do quão grande é esse número, é útil compará-lo com a quantidade de vertebrados terrestres (aves, porcos, bovinos etc.) mortos para consumo mundialmente por ano2, que gira em torno de 70 bilhões. Se somarmos a quantidade de animais mortos pela pesca e a quantidade de vertebrados terrestres mortos, os da pesca representam de 95% a 97,7% dessa quantia. Isto é, a quantidade de animais mortos pela pesca é de 21 a 58 vezes maior do que a quantidade de vertebrados terrestres mortos para consumo. Observe que essas cifras serão muito mais altas se incluirmos o número total de decápodes pescados diretamente no mar.
No futuro, essas cifras poderão se multiplicar, estendendo ainda mais o sofrimento animal.
Poder-se-ia pensar que os animais tipicamente mortos pela pesca não são sencientes, isto é, que são meras “máquinas vivas”, sem consciência alguma. Com base nisso, poder-se-ia pensar então que, apesar da aparência do contrário, a pesca não causa sofrimento e que, apesar de causar mortes, isso não prejudicaria ninguém (pois na ausência de senciência não haveria indivíduos para serem prejudicados com a morte). Contudo, as evidências fisiológicas, comportamentais e de lógica evolutiva apoiam fortemente a conclusão de que esses animais são sencientes.
Em termos de evidências fisiológicas, é importante observar que esses animais possuem sistemas nervosos centralizados com cérebros. É o processamento centralizado das informações, realizado no cérebro, que fornece as condições para o aparecimento das experiências. Há um debate sobre qual teria de ser a quantidade mínima de neurônios e de interação entre eles para a consciência aparecer mas, vários estudos sugerem que os animais tipicamente mortos pela pesca cumprem essas condições3. Outras evidências fisiológicas adicionais de senciência nesses animais são a presença de nociceptores4 (que permitem que o sistema nervoso detecte a presença de estímulos nocivos ou potencialmente nocivos, tornando possível que experimentem dor, frio, calor etc.) e de receptores no cérebro para substâncias que atuam como analgésicos5.
O comportamento desses animais também é plástico (isto é, modifica-se diante de diferentes estímulos), e parece que a melhor maneira de explicar esse comportamento é partindo do pressuposto que estão tentando evitar as experiências negativas e buscando as experiências positivas.
Além disso, como esses animais conseguem se mover no ambiente e precisam se deparar com mudanças no ambiente, é muito provável que, em seu caso, a senciência represente uma vantagem evolutiva, pois aumenta a probabilidade de sobreviverem e de transmitirem sua informação genética. Essas evidências, em conjunto, apoiam fortemente a conclusão de que esses animais são sencientes6.
Na pesca, os animais são prejudicados não apenas com a morte, mas também com o sofrimento, seja no momento da morte, seja antes da morte (pois muitas vezes passam horas ou mesmo dias presos nas redes antes de morrer). Tipicamente, na pesca os animais morrem pelas seguintes razões:
(1) Devido à descompressão quando são puxados para a superfície, o que faz seus órgãos internos explodirem;
(2) De asfixia quando são tirados da água;
(3) Em consequência dos ferimentos do processo de captura ou do cansaço extremo causado pelo estresse ao tentar escapar das redes;
(4) Perfurados por arpões ou empalados por anzóis;
(5) Esmagados pelo peso dos outros animais sendo capturados ao mesmo tempo;
(6) Congelados vivos em frigoríficos onde são imediatamente colocados após serem capturados;
(7) Cozidos vivos (como no caso das lagostas e siris);
(8) Comidos vivos enquanto ainda estão conscientes e
(9) Utilizados como isca – sendo, portanto, comidos vivos pelos animais que estão sendo capturados.
Uma tentativa comum de justificar a pesca é afirmar que, porque esses animais não pertencem à espécie humana, não deveriam receber consideração moral. Contudo, o critério da espécie parece ser tão arbitrário quanto os critérios da raça e gênero.
Outra tentativa de justificar a pesca afirma que aquilo que torna correto desconsiderar moralmente esses animais não é o fato de não pertencerem à espécie humana, mas o fato de (alegadamente) não terem capacidades cognitivas sofisticadas. Contudo, esse argumento implicaria que seria correto causar sofrimento, matar e comer qualquer humano que carecesse de capacidades cognitivas sofisticadas (como os bebês, as crianças até certa idade e os humanos que são vítimas de certas doenças ou acidentes que afetam severamente suas capacidades cognitivas).
A falta de capacidades cognitivas sofisticadas em humanos não é aceita como uma justificativa para tratá-los pior, muito menos para desconsiderá-los completamente. Pelo contrário: dado que a falta dessas capacidades aumenta sua vulnerabilidade, é normalmente vista como uma razão para lhes dar um cuidado maior, e não para lhes causar sofrimento ou morte. Quando estamos a falar de humanos, já é normalmente reconhecido que o que importa para a consideração moral é a capacidade de ser prejudicado e beneficiado, e não a inteligência.
Assim, se a falta de capacidades cognitivas sofisticadas nesses humanos não pode justificar tratá-los pior, muito menos causar-lhes sofrimento ou matá-los, então a falta dessas capacidades nos animais que são mortos na pesca tampouco poderia justificá-la7.
Por essas razões, parece que a pesca, assim como todas as outras formas de discriminação contra os animais não humanos, é um exemplo do que tem sido chamado de especismo. Ou seja, é uma forma injustificável de discriminação contra aqueles que não pertencem a determinada espécie. Devemos rejeitar o especismo e, portanto, a pesca, e respeitar todos os seres sencientes.
1 Estatísticas disponíveis em: fishcount.org.uk (2020) “Fishcount estimates of numbers of individuals killed in (FAO) reported fishery production”, fishcount.org.uk [acessado em 24 de agosto de 2021]; (2019) “Reducing suffering in fisheries”, fishcount.org.uk [acessado em 24 de agosto de 2021]. Para saber como a pesca prejudica os animais, ver Ética Animal (2016) “Pesca”, Exploração animal, Ética Animal [acessado em 24 de agosto de 2021]; ver também Ética Animal (2016) “Pesca esportiva”, Exploração animal, Ética Animal [acessado em 24 de agosto de 2021]. Entre os animais pescados, de 462 bilhões a 1,1 trilhões são utilizados como ração para os animais aquáticos que os humanos reproduzem em pisciculturas.
2 Global Change Data Lab (2018) “Number of animals slaughtered for meat, World, 1961 to 2018”, Our World in Data [acessado em 25 de setembro de 2021]; Sanders, B. (2018) “Global animal slaughter statistics and charts”, Faunalytics, October 10 [acessado em 25 de setembro de 2021].
3 Ética Animal (2019) “Senciência em invertebrados: uma revisão da literatura neurocientífica”, Senciência, Ética Animal [acessado em 23 de outubro de 2021]; (2021) “Invertebrate sentience: A review of the behavioral evidence”, Blog, Animal Ethics, 30 May [acessado em 12 de fevereiro de 2022]. Braithwaite, V. A. (2010) Do fish feel pain?, Oxford: Oxford University Press. Cabanac, M.; Cabanac, A. J. & Parent, A. (2009) “The emergence of consciousness in phylogeny”, Behavioural Brain Research, 198, pp. 267-272. Chandroo, K. P.; Duncan, I. J. H. & Moccia, R. D. (2004) “Can fish suffer? Perspectives on sentience, pain, fear and stress”, Applied Animal Behaviour Science, 86, pp. 225-250. Chandroo, K. P.; Yue, S. & Moccia, R. D. (2004) “An evaluation of current perspectives on consciousness and pain in fishes”, Fish and Fisheries, 5, pp. 281-295. Mather, J. A. (2001) “Animal suffering: An invertebrate perspective”, Journal of Applied Animal Welfare Science, 4, pp. 151-156. Mather, J. A. & Anderson, R. C. (2007) “Ethics and invertebrates: A cephalopod perspective”, Diseases of Aquatic Organisms, 75, pp. 119-129 [acessado em 14 de novembro de 2021]. Smith, J. A. (1991) “A question of pain in invertebrates”, ILAR Journal, 33, pp. 25-31 [acessado em 15 de dezembro de 2021]. Sneddon, L. U. (2003) “The evidence for pain in fish: The use of morphine as an analgesic”, Applied Animal Behaviour Science, 83, pp. 153-162. Sneddon, L. U. (2009) “Pain perception in fish: Indicators and endpoints”, ILAR Journal, 50, pp. 338-342 [acessado em 13 de fevereiro de 2022]; (2018) “Where to draw the line? Should the age of protection for zebrafish be lowered?”, Alternatives to Laboratory Animals, 46, pp. 309-311 [acessado em 19 de novembro de 2021]. Sneddon, L. U.; Braithwaite, V. A. & Gentle, M. J. (2003) “Do fishes have nociceptors? Evidence for the evolution of a vertebrate sensory system”, Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, 270, pp. 1115-1121. Ética Animal (2021) “Uma fisiologia ilustrada do sistema nervoso de invertebrados”, Senciência, Ética Animal [acessado em 23 de outubro de 2021].
4 Sobre nocicepção, ver Sneddon, L. U. (2004) “Evolution of nociception in vertebrates: Comparative analysis of lower vertebrates”, Brain Research Reviews, 46, pp. 123-130.
5 Ver Birch, J.; Burn, C.; Schnell, A.; Browning, H. & Crump. A. (2021) Review of the evidence of sentience in cephalopod molluscs and decapod crustaceans. London: London School of Economics and Political Science [acessado em 22 de março de 2022].
6 Por exemplo, uma revisão da evidência de senciência em cefalópodes e decápodes conduzida em 2021 utilizou oito critérios de avaliação: (1) posse de nociceptores; (2) posse de regiões cerebrais integrativas; (3) conexões entre nociceptores e regiões cerebrais integrativas; (4) respostas afetadas por potenciais anestésicos ou analgésicos locais; (5) trade-offs motivacionais que mostram um equilíbrio entre a ameaça e a oportunidade de recompensa; (6) comportamentos autoprotetores flexíveis em resposta à lesão e ameaça; (7) aprendizagem associativa que vai além da habituação e sensibilização; (8) comportamento que mostra que o animal valorizaanestésicos ou analgésicos locais quando lesionados. Com base nesses critérios, a revisão concluiu que há evidências muito fortes de senciência em octópodes e em caranguejos, e que há evidências consideráveis de senciência nos outros cefalópodes e decápodes estudados. Para o estudo, ver Birch, J.; Burn, C.; Schnell, A.; Browning, H. & Crump. A. (2021) Review of the evidence of sentience in cephalopod molluscs and decapod drustaceans, op. cit.
7 Horta, O. (2010) “What is speciesism?”, Journal of Agricultural and Environmental Ethics, 23, pp. 243-266 [acessado em 11 de maio de 2021], and Animal Ethics (2020) “Ethics and animals”, Animal Ethics, YouTube [acessado em 14 de março de 2022].