O contratualismo é um ponto de vista que aparece tanto na ética quanto na teoria política. O que há de particular nele é que considera como devemos agir fazendo a seguinte pergunta: “como poderíamos chegar a um acordo sobre as regras que devem governar a sociedade?”. No contratualismo contemporâneo, as normas morais derivam da ideia de um contrato ou acordo mútuo. O objetivo é que as partes cheguem a um acordo que seja aceitável para todos.
Por vezes, é afirmado que o contratualismo não apoia a consideração moral dos animais. Contudo, há razões para se concluir que sim, apoia, e que pode prescrever o antiespecismo, o veganismo e ajudar os animais selvagens.
O contratualismo tem suas origens nas teorias do contrato social sobre a legitimidade da autoridade política que foram proeminentes nos séculos XVII e XVIII. Essas teorias foram desenvolvidas durante o período do iluminismo, quando os valores tradicionais estavam sendo questionados. Particularmente relevante para o desenvolvimento da teoria do contrato social foi a rejeição do direito divino dos reis. Se deus não nomeou monarcas, então por que as pessoas deveriam obedecê-los? Essa questão levou a sociedade a perguntar por que alguém concordaria em ser governado por outra pessoa. A teoria do contrato social foi projetada para responder a essa pergunta1.
Uma das teorias mais famosas desse tipo é a de Thomas Hobbes2. Ele argumentou que o estado natural da humanidade era pré-político: ninguém tinha autoridade sobre o outro, nem tinha o dever de ajudar a proteger os interesses dos outros. Hobbes caracterizou esse estado de natureza como de guerra, em que a vida era tipicamente “desagradável, brutal e curta”. Para escapar dessa situação perigosa, Hobbes argumentou que as pessoas se uniram voluntariamente para adotar um sistema político. Cada um reconheceria que a vida em seu estado natural é perigosa, pois cada pessoa é capaz de prejudicar os outros e vulnerável a ser prejudicada. Para Hobbes, o ponto de partida é a vida em seu estado natural e a ideia de que nossos contratos sociais são motivados por nossa inclinação natural para viver. Por razões puramente de interesse próprio, todos abririam mão de seu direito natural de prejudicar os outros, mas apenas se os outros fizessem o mesmo. Ao contrário da maioria dos contratualistas modernos, Hobbes não idealizou sua posição inicial para garantir imparcialidade ou justiça. Como veremos a seguir, isso permite que um contratualista hobbesiano endosse princípios morais que promovam a desigualdade.
Formas mais antigas de contratualismo, como a de Hobbes, sustentam que os indivíduos são primariamente autointeressados e que um indivíduo racional tentará minimizar sua vulnerabilidade e maximizar seu próprio benefício. Isso resulta em desigualdade devido a desequilíbrios naturais de poder. Por exemplo, de acordo com essas visões antigas, as partes mais fracas poderiam concordar com um princípio do tipo “o mais forte está sempre certo” porque estariam em uma situação ainda pior se não o aceitassem. No entanto, nem todas as versões do contratualismo implicam tal desigualdade extrema. A maioria das formas contemporâneas de contratualismo conclui que devemos respeitar os outros3.
O contratualismo contemporâneo difere da teoria tradicional do contrato social de várias maneiras. Primeiro, enquanto os primeiros teóricos do contrato social usavam o dispositivo do contrato apenas para justificar a autoridade política, os contratualistas contemporâneos normalmente o usam para fundamentar a moralidade como um todo. Sem o contrato não haveria princípios morais válidos. Em segundo lugar, Hobbes aceitou o fato de que diferentes pessoas têm diferentes graus de poder no estado de natureza, e então alguns têm maior poder de barganha na formação das regras que governariam a sociedade, o que resulta em desigualdade política. O contratualismo hobbesiano pode, portanto, endossar resultados altamente desiguais, ou mesmo a escravização e a dominação de um grupo sobre outro4. A maioria dos contratualistas modernos, no entanto, argumenta que as circunstâncias nas quais os princípios morais e políticos são escolhidos devem ser restringidas de certas maneiras para garantir um resultado justo. A teoria contratualista de John Rawls tem sido a mais influente delas.
Rawls argumentou que aqueles indivíduos na “posição original” (termo que Rawls utilizou para o ponto de partida) deveriam ser colocados atrás de um “véu da ignorância” que lhes nega qualquer conhecimento de qual será sua própria posição na sociedade. Isso significa que eles poderiam vir a nascer em uma família pobre ou rica, por exemplo, e a ausência desse conhecimento garantiria a imparcialidade5. Rawls nos convida a imaginar uma situação na qual temos que escolher as normas de uma nova sociedade hipotética em que viveremos, ignorando completamente todos os fatos sobre qual será nosso lugar nessa sociedade, bem como nossa constituição física, nossa etnia e assim por diante. Como as pessoas não saberiam de antemão sua posição na sociedade, elas têm razões autointeressadas para escolher princípios morais que beneficiarão a todos.
Thomas Scanlon, outro pensador influente na tradição contratualista, argumentou que os princípios morais que devemos aceitar são aqueles que ninguém poderia razoavelmente rejeitar (veja abaixo um exemplo do que é “razoável”6). Embora não faça uso de um véu de ignorância, Scanlon garante a justiça ao: (1) presumir que todos os indivíduos desejam chegar a um acordo que será aceitável para todos e (2) estipular o que conta como fundamentos razoáveis para se rejeitar um princípio. Na teoria de Scanlon, os indivíduos são motivados tanto pelo seu próprio autointeresse quanto pelo respeito básico por outras pessoas. Assim, por exemplo, a pessoa X pode rejeitar um princípio apontando que ele lhe imporia algum ônus, a menos que todos os princípios alternativos impusessem um ônus ainda maior a outra pessoa – fazer o contrário não seria razoável7.
Às vezes se pensa que o contratualismo não pode justificar o reconhecimento de consideração moral plena aos animais não humanos8 . Rawls e Scanlon afirmam que suas versões do contratualismo não se aplicam aos animais. Quais características da teoria fazem algumas pessoas pensarem que ela não é compatível com dar consideração moral plena aos animais não humanos? Há várias, algumas das quais se aplicam apenas a formas específicas de contratualismo, mas a característica mais importante, comum a todas as formas, é a necessidade de que as partes do contrato tenham certas capacidades cognitivas. Ou seja, elas devem ser capazes de entender os termos do contrato, argumentar sobre princípios morais e políticos e entender adequadamente seus próprios interesses e como promovê-los. Mas os princípios morais adotados por esses agentes só se aplicam a outros agentes que também possuem essas capacidades?
Alguns contratualistas pensam que sim. Peter Carruthers diz que os princípios morais são feitos “por agentes racionais, para agentes racionais9. Como a maioria dos contratualistas, Carruthers caracteriza os formuladores do contrato social como racionais e autointeressados. O argumento é o de que, se eles estão trabalhando em um contrato social, então devem ser humanos porque os animais não seriam capazes de fazer isso, e é por isso que, mesmo por trás do véu da ignorância, as partes negociadoras podem presumir que serão humanos. Carruthers argumenta que os animais não humanos não devem ser moralmente consideráveis porque apenas as partes racionais podem negociar o contrato, e apenas os humanos são racionais. Assim, se as partes negociadoras sabem que serão seres humanos nessa nova sociedade hipotética, então elas não têm nenhuma razão autointeressada para concordar com quaisquer princípios morais que restrinjam seu próprio comportamento para proteger os interesses dos animais.10.
Existem vários problemas com esta linha de argumentação, alguns específicos ao argumento de Carruthers e alguns que se aplicam à teoria contratualista de forma mais ampla. O maior problema é a suposição contratualista de que os formuladores do contrato (aqueles que decidem sobre os princípios morais que governarão suas interações futuras) e os beneficiários do contrato (aqueles que desfrutarão das proteções morais que ele oferece) devem ser os mesmos11. No entanto, não há nada na própria estrutura do contratualismo que exija isso. Os formuladores do contrato podem decidir estender seus termos para proteger outros indivíduos que não fizeram parte da negociação, incluindo aqueles que não são capazes de participar. Mas por que os formuladores estenderiam essa proteção a outros que não fariam parte das negociações? Eles estenderiam, uma vez que são estipulados como agentes puramente autointeressados?
Donald VanDeVeer argumentou que os formuladores racionais do contrato social escolheriam estender a proteção moral aos animais não humanos, mas por motivos puramente autointeressados.12. Ele baseou seu argumento em uma interpretação do véu da ignorância que nega aos contratantes o conhecimento não apenas dos seus dotes naturais e da sua posição socioeconômica, mas também da sua espécie (uma visão que Richard Ryder – que cunhou o termo “especismo” – também endossou13). Como ele aponta, a razão para usar o véu da ignorância é garantir que os formuladores do contrato social sejam imparciais, ou seja, que não escolham princípios morais que os favoreçam sobre os outros. É por isso que todo conhecimento particular de suas próprias circunstâncias deve ser negado a eles na posição original. VanDeVeer aponta que os agentes na posição original têm grandes capacidades cognitivas, uma vez que são capazes de entender e argumentar sobre princípios morais e políticos muito complexos, e geralmente são considerados como tendo conhecimento geral substancial de psicologia, economia e outros campos relevantes para projetar a estrutura básica da sociedade. Se soubessem que manteriam esse altíssimo nível de racionalidade na sociedade que estão projetando, ficariam tentados a adotar princípios morais que favoreceriam desproporcionalmente os membros mais racionais dessa sociedade, deixando de ser imparciais. Se eles não podem assumir que serão altamente racionais na nova sociedade, isso abre a possibilidade de que eles venham a ser um animal não humano senciente. Diante dessa possibilidade14, eles têm motivos para rejeitar os princípios morais que permitem a discriminação contra os animais não humanos.
Mark Rowlands também defende o “espessamento” do véu da ignorância, visando excluir o conhecimento da própria espécie15. Rowlands aponta que o véu de ignorância de Rawls é baseado em um princípio moral de justiça. A compreensão de justiça de Rawls enfatiza a igualdade moral de todas as pessoas e a negação de que diferenças “moralmente arbitrárias” entre as pessoas devam resultar em perspectivas de vida melhores ou piores. Para Rawls, a categoria de diferenças “moralmente arbitrárias” inclui não apenas a posição socioeconômica, mas também as características naturais com as quais se nasce, como inteligência ou beleza. Essas propriedades naturais são moralmente arbitrárias no sentido de que não se faz nada para merecê-las – elas são simplesmente o resultado da sorte na loteria natural. Ninguém merece sua boa ou má sorte nesta loteria e, segundo Rawls, tampouco merecem os benefícios que essas propriedades não merecidas trazem (por exemplo, um salário alto), e é por isso que o véu da ignorância exclui o conhecimento das próprias propriedades naturais que alguém teria.
Uma vez que alguém entende por que o conhecimento de suas propriedades naturais (como inteligência, força, etc.) deve ser retido por trás do véu da ignorância, fica claro que o conhecimento de sua espécie também deve ser excluído. O pertencimento a uma espécie, como todas as outras propriedades naturais, é um resultado não merecido da loteria natural. Como tal, a espécie deve ser entendida como uma propriedade moralmente arbitrária, e os benefícios que dela resultam também não são merecidos. Para evitar inconsistência, um contratualista rawlsiano deve excluir o conhecimento de sua espécie na posição original. Temos fortes razões autointeressadas para não aceitar um princípio moral que discrimine contra indivíduos de um grupo se não tivermos certeza se pertenceremos ou não a esse grupo. Isso significa que as partes do contrato não vão querer aceitar princípios morais que discriminem contra seres sencientes que não pertencem à espécie humana. A única outra opção seria desistir completamente da imparcialidade e adotar uma forma hobbesiana pura de contratualismo, uma posição que a maioria de nós rejeitaria.
O contratualismo contemporâneo, como outras teorias éticas, é incompatível com a exclusão moral dos animais não humanos e com o especismo. No entanto, como vimos no caso de Peter Carruthers, existem posições especistas que são defendidas por meio de um apelo ao contratualismo. Mas os contratualistas não precisam aceitar tais visões, que implicam assumir uma versão antiga do contratualismo (como a de Hobbes) que a maioria das pessoas considera inaceitável hoje em dia.
Isso implica que não devemos aceitar práticas que sejam prejudiciais aos animais, mas que beneficiem os seres humanos. Não as aceitaríamos se estivéssemos decidindo os princípios de justiça que deveriam governar nossa sociedade e não soubéssemos se viríamos a estar na nossa situação ou na dos animais. Assim, o contratualismo contemporâneo deveria nos conduzir a rejeitar tais práticas especistas. Desse modo, o contratualismo contemporâneo pode nos dar razões para defender o veganismo.
Além disso, essa visão também conduziria a uma posição em relação a ajudar os animais que é semelhante à nossa posição em relação a ajudar os seres humanos. Gostaríamos de ser ajudados se estivéssemos na situação dos animais necessitados, como os animais que sofrem na natureza, – que podem ser ajudados em muitos casos, mas muitas vezes não o são. O contratualismo contemporâneo nos levaria a ajudá-los pelas razões apresentadas acima.
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1 Kymlicka, W. (1993) “The social contract theory”, in Singer, P. (ed.) A companion to ethics, Oxford: Blackwell, pp. 186-196.
2 Hobbes, T. (1651) Leviathan, or the matter, forme & power of a common-wealth ecclesiasticall and civill, London: Andrew Crooke [acessado em: 10 dez. 2013].
3 Cudd, A. & Eftekhari, S. (2017 [2000]) “Contractarianism”, in Zalta, E. N. (ed.) The Stanford encyclopedia of philosophy, Summer 2018 ed., Stanford: The Metaphysics Research Lab, Mar 15 [acessado em: 14 jan. 2021].
4 Kymlicka, W. (1993) “The social contract theory”, op. cit., p. 114-115.
5 Rawls, J. (1999 [1971]) A theory of justice, rev. ed., Cambridge: Harvard University Press.
6 Scanlon, T. (1998) What we owe to each other, Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press.
7 Ashford, E. and Mulgan, T. (2018 [2007]) “Contractarianism”, in Zalta, E. N. (ed.) The Stanford encyclopedia of philosophy, Summer 2018 ed., op. cit., Apr 20 [acessado em: 14 jan. 2021].
8 Ver Rowlands, M. (1997) “Contractarianism and animal rights”, Journal of Applied Philosophy, 14, p. 235.
9 Carruthers, P. (2011) “Against the moral standing of animals”, University of Maryland [acessado em: 15 jan. 2021].
10 Carruthers argumenta que o contratualismo pode fornecer fundamentos para um nível mínimo de consideração moral indireta para com os animais. No entanto, ele pensa que isso apenas proibiria a crueldade com animais que não serve a nenhum propósito. A pecuária industrial, os testes de cosméticos etc. ainda seriam endossados.
11 Ver Rowlands, M. (1997) “Contractarianism and animal rights”, op. cit., p. 236; Nussbaum, M. (2006) Frontiers of justice: Disability, nationality, species membership, Cambridge: Harvard University Press, p. 16.
12 VanDeVeer, D. (1979) “Of beasts, persons, and the original position”, The Monist, 62, pp. 368-377.
13 Ryder, R. D. (2000) Animal revolution: Changing attitudes towards speciesism, Oxford: Basil Blackwell, p. 217.
14 Na verdade, isso é mais do que uma possibilidade – os seres humanos representam apenas uma pequena proporção da população global total de seres sencientes. Se um agente na posição original tem a mesma chance de se tornar qualquer um desses seres sencientes, então as chances de se tornar um humano são extremamente pequenas.
15 Rowlands, M. (2009 [1998]) Animal rights: Moral theory and practice, 2nd rev. ed., Basingstoke: Palgrave Macmillan.