Senciência em invertebrados: uma revisão das evidências comportamentais

Senciência em invertebrados: uma revisão das evidências comportamentais

20 Jul 2022

Introdução

Os invertebrados são animais que não possuem ou desenvolvem uma coluna vertebral, incluindo insetos, moluscos e corais. Embora o número exato de espécies de invertebrados que existem na Terra seja desconhecido, as estimativas repetidamente mostram que elas compreendem 95% de todas as espécies animais1 e mais de 99,9% de todos os indivíduos animais2. Devido ao enorme número de invertebrados, se os invertebrados importam moralmente, eles também são de enorme importância moral.

Os invertebrados importam moralmente se forem sencientes. A senciência é a capacidade de ter experiências subjetivas. Ela é por vezes descrita utilizando-se as palavras relacionadas consciência ou consciência fenomenal. Se os invertebrados são sencientes, isso significa que eles têm a capacidade de sentir dor e prazer, características que lhes garantiriam a inclusão em nosso círculo moral. Como o que acontece com eles é importante para eles, os animais sencientes têm estados de bem-estar e, portanto, podem ser ajudados ou prejudicados por eventos que aumentam ou diminuem esse bem-estar.

Infelizmente, a situação dos invertebrados é grave. São prejudicados nas atividades humanas em diversos setores e indústrias: crustáceos, insetos e moluscos são mortos e consumidos; chocos são mortos e sua tinta é extraída para uso na culinária; cochonilhas são mortas para a produção de corantes e bichos-da-seda são fervidos vivos para a produção de seda3. Muitos também são mortos por inseticidas. Além disso, os invertebrados na natureza enfrentam ameaças constantes de doenças, fome, mudanças em seus ambientes e outras fontes de danos. Se um invertebrado em qualquer uma dessas situações fosse substituído por um animal ao qual atribuímos senciência, como outros humanos ou grandes mamíferos, pareceria evidente que essas experiências causariam muito sofrimento.

Portanto, saber se os animais invertebrados possuem senciência é uma questão-chave. Se são sencientes, isso significa que eles têm a capacidade de experimentar dor e prazer – características que lhes garantiriam consideração em nosso círculo moral.

Atualmente nossa capacidade de responder a essa pergunta é limitada porque ainda há poucas pesquisas sobre esse tópico, apesar de sua evidente importância. A dificuldade dessa tarefa pode ser uma das principais razões para isso. Dado que ainda não resolvemos o problema difícil da consciênciai, não temos uma compreensão de como e por que os seres sencientes têm experiências fenomenais. No entanto, uma investigação mais aprofundada sobre as características anatômicas e comportamentais de uma série de invertebrados ajudaria nossas estimativas de quais deles são conscientes.

Relevância da evidência comportamental ao se estimar a senciência

Como a consciência é subjetiva4, não se pode acessar a mente de nenhum outro indivíduo para verificar sua consciência5. Isso é conhecido como “o problema das outras mentes” e fornece um obstáculo à avaliação da senciência. Observar o comportamento não pode dar acesso direto à natureza subjetiva e pessoal da experiência consciente.

Há outra razão pela qual o comportamento por si só não pode ser usado para diferenciar entre atores inconscientes e conscientes. Essa razão é que uma ampla gama de comportamentos sofisticados pode ser coordenada como resultado de mecanismos inconscientes, como respostas programadas. Estes vão desde reflexos em humanos, passando por robôs programados para responder a estímulos específicos com comportamentos que imitam a dor até a inteligência artificial capaz de jogar xadrez. Atualmente, nem robôs nem plantas são considerados como tendo as características anatômicas ou comportamentais requeridas para a existência de consciência6, o que mostra o perigo de se confiar demais no comportamento.

Isso não significa, entretanto, que a experiência consciente nos outros não possa ser avaliada de fora, ou que a observação do comportamento seja inútil. A senciência pode ser avaliada por meio de argumentos por analogia ou inferindo a senciência como a melhor explicação para os comportamentos observados. Um argumento por analogia é um argumento que defende que, porque duas coisas compartilham certas similaridades conhecidas, elas também podem ser semelhantes em outros aspectos. Por exemplo, se o comportamento dos invertebrados se assemelha ao comportamento dos animais maiores, uma vez que esses animais maiores são sencientes, os invertebrados também podem ser sencientes7. Podemos usar esse tipo de argumento para investigar a presença de consciência em invertebrados procurando semelhanças entre as características anatômicas e comportamentais que são vistas em invertebrados e em outros animais que já acreditamos que são sencientes. O problema das outras mentes não significa que não possamos confiar na crença de que outros organismos além de nós mesmos possuem experiências conscientes. Apenas mostra por que os métodos disponíveis para se estimar a senciência de animais não humanos não permitem uma resposta definitiva.

Esta revisão não busca evidências conclusivas, mas, em vez disso: (1) identificar as características comportamentais que fornecem evidências probabilísticas de senciência e (2) avaliar até que ponto elas são vistas em invertebrados. Considerada em conjunto com perspectivas neurocientíficas e evolutivas, uma melhor compreensão dos indicadores comportamentais pode contribuir para estimativas mais informadas das probabilidades de diferentes tipos de invertebrados serem sencientes. Esse conhecimento nos ajudará a entender como as atividades humanas afetam o bem-estar dos invertebrados para que possamos evitar prejudicá-los e buscar ajudá-los quando pudermos.

Comportamentos mais propensos a refletir senciência

Esta revisão se concentra em três categorias principais de características comportamentais que parecem refletir a experiência consciente. Eles são: flexibilidade comportamental, comportamentos baseados em emoções e comportamentos sociais. Entretanto, essas categorias não cobrem todos os tipos de comportamento que podem ser relevantes.

Flexibilidade comportamental

A flexibilidade comportamental será apresentada aqui como uma categoria de traços comportamentais que exibem a capacidade de se adaptar a ambientes em mudança. Estes traços incluem aprendizagem, comportamento adaptativo e generalização cognitiva. Esses comportamentos envolvem tanto a integração de diferentes tipos de informações quanto o armazenamento de tais informações para serem aplicadas em cenários futuros.

Um dos possíveis papéis da consciência é facilitar o comportamento flexível, que pode desempenhar um papel importante em nossa capacidade de avaliar diferentes opções e decidir sobre a melhor opção geral8. Nossas práticas mais rotineiras, como andar de bicicleta, também costumam ter um envolvimento consciente mínimo, enquanto situações novas e as respostas flexíveis que elas exigem geralmente exigem um envolvimento mais consciente. Podemos, portanto, obter insights sobre quais entidades são conscientes examinando até que ponto seu comportamento é rígido ou flexível.

Um exemplo esclarecedor de comportamento flexível em invertebrados foi apresentado por formigas de funilii em um estudo de Lőrinczi et al (2017)9. Essas formigas foram observadas utilizando objetos absorventes disponíveis em seu ambiente para transportar água ou água açucarada de volta à sua colônia. Quando receberam materiais diferentes para realizar essa tarefa, as formigas aprenderam rapidamente que as esponjas eram as mais absorventes do que outros materiais e passaram a preferir utilizá-las. Elas até cortaram as esponjas em segmentos menores para que pudessem carregar mais facilmente. Se estivessem agindo apenas de uma maneira predeterminada, não esperaríamos que aprendessem que novos materiais como esponjas funcionavam melhor para seu objetivo de transportar líquidos, como elas fizeram. Isso mostra alguma capacidade de entender os diferentes níveis de absorção e de escolher com flexibilidade a substância que é mais eficaz para alcançar seu objetivo.

O uso flexível de ferramentas também é observado em polvos venososiii. Descobriu-se que esses animais carregam metades de casca de coco para usar como uma espécie de concha protetora contra predadores. Como as conchas são um fardo para carregar, os polvos precisam utilizar uma nova forma de locomoção chamada “andar sobre pernas-de-pau10 ”. Carregar conchas que são um fardo na maioria das situações mas são muito úteis em outras provavelmente é um indício de previsão. Além disso, como os humanos são a fonte das cascas de coco divididas, os polvos venosos provavelmente não tiveram tempo de evoluir especificamente esse comportamento. Em vez disso, representa um comportamento flexível11. A quantidade de evidências disponíveis torna difícil sustentar que os polvos não são sencientes.

A preferência condicionada por lugar é outro tipo de flexibilidade comportamental. A preferência condicionada por lugar funciona por meio do sistema de recompensa do “querer”, que aumenta a atratividade percebida de um estímulo em vez de induzir o estado afetivo de gostar dele, o que significa que um estado afetivo consciente não é necessário para que um sistema de recompensa funcione12. No entanto, a capacidade de desenvolver uma associação e uma nova resposta aprendida para formar uma preferência condicionada por lugar sugere um sistema integrado. Isso diminui a probabilidade de se tratar de um organismo inconsciente, rígido e programado. É uma forma de aprendizagem baseada no sistema de recompensa, por isso pode refletir a senciência.

Parece que os comportamentos mais flexíveis ocorrem em organismos conscientes porque eles podem se aplicar cognitivamente para escolher entre uma gama de opções dinâmicas com um grau de imprevisibilidade. A flexibilidade comportamental também pode ser observada nos casos em que os animais são capazes de responder adequadamente a novos contextos com comportamento complexo, apesar de esse contexto não fazer parte de seu ambiente ancestral. Isso significa que eles ainda não teriam uma resposta evoluída apropriada; em vez disso, são capazes de aplicar comportamentos através dos contextos.

Parece que quanto mais flexível e complexo é o comportamento de um organismo, menos provável é que toda a gama de comportamentos possa ser explicada meramente por mecanismos de estímulo-resposta. Eles poderiam, no entanto, ser explicados pela experiência consciente e pela capacidade cognitiva. Os comportamentos analisados ​​aqui parecem ser suficientemente complexos para requerer consciência. Eles estão presentes em animais conscientes como humanos e outros mamíferos, e podem servir como indicadores de consciência.

Comportamentos baseados em emoções

As emoções podem ser consideradas como a posse de estados primitivos que são comuns entre espécies que compartilham traços semelhantes13. No entanto, esses estados podem se manifestar por meio de comportamentos diferentes em espécies diferentes. Esses estados emocionais basais têm três características fundamentais: valência (positiva ou negativa), escalabilidade (intensidade) e persistência (comportamentos emocionais que duram mais do que os estímulos que os desencadearam e se generalizam para outros contextos). Procurar evidências dessas três características nos comportamentos dos invertebrados proporciona uma maneira de avaliar se os invertebrados experimentam estados emocionais.

No entanto, também podem existir comportamentos emocionais que parecem refletir estados emocionais basais conscientes, mas que são simplesmente comportamentos de um estado inconsciente. Portanto, seria errado assumir que a presença dessas características fundamentais dos comportamentos emocionais garante um estado emocional consciente. No entanto, pode-se reconhecer que todas as três características (valência, escalabilidade e persistência) estão presentes nos estados emocionais humanos conscientes. Logo, se observadas evidências de todas as três em um invertebrado, isso aumenta a probabilidade de que um estado emocional consciente esteja sendo experimentado.

Evidência de indicadores de estado emocional

A valência pode ser identificada por meio de interpretações do comportamento de invertebrados mentalmente mais complexos, como as abelhas. As abelhas mostraram um viés cognitivo pessimista após uma ameaça predatória14. Após tal ameaça, as abelhas eram mais propensas a interpretar estímulos ambíguos como negativos, encolhendo sua probóscideiv como uma indicação disso, além de aumentarem seu afastamento de uma ameaça semelhante. Isso mostra generalização na resposta comportamental, que é uma característica dos estados emocionais.

Os zangões exibiram um estado emocional positivo após a exposição a recompensas inesperadas15. Depois de ter uma experiência positiva, os zangões que posteriormente enfrentam uma ameaça levaram menos tempo do que o normal para retornar aos comportamentos normais de forrageamento depois que a situação passou. Esses comportamentos sugerem que as abelhas podem interpretar experiências em uma escala positiva e negativa. A persistência na forma de generalização contextual (a manutenção e aplicação de um estado cognitivo a outros contextos) é um indicador de experiência emocional devido à presença de um estado cognitivo. Os zangões demonstraram isso por meio do tempo reduzido para continuar o comportamento normal de forrageamento, aplicando seu estado emocional positivo como resultado de um estímulo positivo à tomada de decisão e reduzindo sua resposta inata de maior cautela a uma situação ameaçadora. Esses comportamentos sugerem que as abelhas podem interpretar experiências em uma escala positiva e negativa.

Diferenciar os verdadeiros estados emocionais e comportamentos que ocorreram como resultado da experiência da emoção de comportamentos programados e inconscientes (como reflexos) apresenta um desafio significativo. Existem múltiplas respostas paralelas aos estados emocionais conscientes (comportamentais, endócrinas, autônomas, cognitivas), já que os estados inconscientes não podem produzir os aspectos cognitivos16. Esse aspecto pode ser visto por meio dos vieses cognitivos duradouros observados nas abelhas.

No entanto, pode-se argumentar que esses comportamentos, que podem indicar uma experiência emocional, também podem ser respostas pré-programadas complexas. De fato, foram feitos alguns robôs que, sem dúvida, têm capacidade de cognição complexa, incluindo o uso de emoções artificiais que produzem comportamento dependente do contexto como resultado de vários graus da responsividade de circuitos particulares a determinados dados de entrada17. Outras interpretações foram fornecidas para as observações feitas nesses experimentos que não envolvem a experiência subjetiva. Em vez disso, essas interpretações se referem ao fato de que as abelhas podem estar adaptadas para responder com cautela pré-programada a um ambiente perigoso18.

Embora os comportamentos de uma entidade consciente e de uma inconsciente possam não ser distinguíveis, uma avaliação mais precisa da probabilidade de senciência pode ser alcançada se for considerara o tipo de entidade que está sendo observada. Evolutivamente, as emoções têm uma função adaptativa, coordenando a resposta do indivíduo a uma prioridade relacionada à adaptação após integrar informações do ambiente e do corpo.

A consciência surgiu em algum ponto da história evolutiva, resultando em comportamentos particulares como a capacidade de experimentar estados emocionais e responder a eles. No entanto, não se sabe quando a consciência evoluiu pela primeira vez. Portanto, quando animais não humanos exibem os comportamentos que descrevemos como indicativos de consciência, parece plausível que haja uma experiência consciente comum. No caso de sistemas de inteligência artificial, parece muito menos provável que o mecanismo para esses comportamentos esteja enraizado na consciência, uma vez que a história evolutiva não é compartilhada. Em vez disso, seus comportamentos podem se assemelhar apenas superficialmente a indicadores de consciência. Isso significa que, embora não possamos ter certeza da presença de estados emocionais em invertebrados, é provável que os comportamentos discutidos indiquem algum tipo de experiência emocional.

Comportamentos sociais

Comportamentos sociais e comunicação podem servir como um indicador razoável da probabilidade de senciência.

Comportamentos sociais complexos que surgiram por meio da evolução das sociedades de animais requerem interações eficientes entre organismos que precisam entender uns aos outros para sobreviver ou obter sucesso na reprodução. Isso requer uma consciência dos eventos externos e, potencialmente, uma compreensão de seus efeitos que seja sensível a nuances. A comunicação também pode exigir algum grau de autoconsciência para modular a mensagem que está sendo enviada. Esse grau de autoconsciência poderia indicar que um animal é consciente de acordo com, por exemplo, teorias de ordem superior da consciênciav. Essa hipótese é fortalecida quando se pode mostrar que comportamentos sociais e comunicativos que podem ser inatos a um organismo podem ser adaptados e aplicados em diferentes contextos, mostrando um nível de integração e reduzindo a probabilidade de que seja o resultado de uma reação em cadeia puramente inconsciente.

Espécies de Drosophila demonstraram a capacidade de aprender dialetos por meio da vida em comunidade19. De fato, fêmeas isoladas de Drosophila inexperientes, quando colocadas junto com fêmeas experientes, foram capazes de mostrar uma comunicação parcial, semelhante a quando as moscas normais são agrupadas. Dessa forma, a coabitação permite que a comunicação seja melhorada por meio de sinais visuais e olfativos. A capacidade de comunicação entre os animais dessa espécie de mosca-das-frutas é inata. No entanto, o grau com que consegue transmitir informações é desenvolvido por meio da socialização. A plasticidade neural permite que a capacidade de comunicação – que é inata – seja desenvolvida. Para tanto, é necessário um aprendizado ativo por meio da integração de múltiplos estímulos sensoriais, mostrando que esse comportamento possui algum nível de flexibilidade.

O comportamento social e a capacidade de comunicação das abelhas vão ainda mais longe. A observação de abelhas asiáticas e europeias20 sugere que cada espécie tem seu próprio dialeto da dança das abelhas, um método notavelmente complexo de comunicação simbólica que permite que as forrageadoras transmitam a localização de uma fonte de alimento para suas companheiras de colméia. Também foi observado que diferentes espécies (abelhas asiáticas e europeias) na mesma colônia são capazes de comunicar-se entre si por meio de suas danças. As abelhas da espécie asiática demonstraram a capacidade de decodificar as danças das abelhas europeias e, como resultado, localizar a fonte de alimento anunciada. Assim, parece que o aprendizado social entre as espécies de abelhas é possível, e que a dança aparentemente inata das abelhas pode ter um aspecto de aprendizado mais maleável. Essas abelhas mostram flexibilidade em seu comportamento, o que indica maior probabilidade de senciência21.

A maioria das espécies de formigas e cupins tem um sistema de comunicação complexo mediado por meio de substâncias químicas, mas um comportamento social ainda mais surpreendente foi encontrado em uma espécie de formiga que não utiliza trilhas químicas para se comunicar. A “corrida em fileira” na espécie Temnothorax albipennis pode ser um caso de comportamento de ensino22. Após descobrir uma nova fonte de alimento, as formigas dessa espécie escolherão outra formiga para guiá-las até a fonte. A formiga professora se moverá muito mais lentamente durante esse processo de instrução, permitindo que a formiga aluna olhe ao redor e memorize a rota. Quando a formiga aluna estiver pronta para prosseguir, ela baterá na formiga professora com suas antenas para indicar que está pronta. Isso mostra que, para facilitar o aprendizado, a formiga professora age de forma diferente na presença da formiga aluna, e que há um feedback bidirecional entre as duas23. Isso mostra algum nível de compreensão da mente da outra formiga, bem como um nível de autocompreensão para que a comunicação possa ocorrer dessa maneira.

Os chocos apresentam alguns dos comportamentos sociais mais sofisticados. São cefalópodes, um grupo de invertebrados que possuem os cérebros e comportamento mais avançados entre os invertebrados. Um exemplo disso é o comportamento social demonstrado no comportamento de acasalamento dos chocos. Os chocos machos alteram seu comportamento dependendo de se estão interagindo com um macho ou uma fêmea. Alguns chocos machos pequenos enganam outros machos que estão vigiando as fêmeas, imitando a aparência e o comportamento das fêmeas. Eles fazem isso para que não sejam detectados enquanto tentam acasalar com as fêmeas24. O comportamento enganoso é um comportamento social avançado.

A importância da sociedade em algumas espécies de insetos, como as baratas, pode ser entendida a partir das consequências comportamentais do isolamento social. Baratas socialmente isoladas exibem uma síndrome comportamental, com comportamentos essenciais à sua sobrevivência sendo inibidos ou reduzidos. Isso inclui tanto uma diminuição da taxa de forrageamento quanto do interesse em explorar o ambiente. Essas respostas refletem os efeitos comportamentais observados em animais vertebrados socialmente isolados, com uma diminuição no interesse demonstrado em exploração e novos ambientes. Notavelmente, isso por si só não aumenta a probabilidade de senciência em invertebrados, pois espécies de plantas também interagem e trocam informações com organismos que lhes permitem prosperar, com o isolamento mostrando efeitos prejudiciais ao crescimento e desenvolvimento. No entanto, ao considerarmos a probabilidade de senciência, há uma diferença substancial entre esses dois exemplos: a relação evolutiva entre animais invertebrados e os animais vertebrados que consideramos sencientes é muito mais próxima do que entre plantas e animais invertebrados.

Conclusão

Vários pontos ficaram evidentes a partir desta revisão de literatura. Um é que invertebrados de diferentes grupos demonstram uma série de comportamentos complexos, mostrando interação contínua entre o organismo e seu ambiente em todas as três categorias de comportamento exploradas (flexibilidade comportamental, comportamentos baseados em emoções e comportamentos sociais).

Outro ponto é que usar o comportamento como único determinante da presença de senciência em invertebrados é inadequado. O comportamento deve ser utilizado em conjunto com outras formas de evidência, especialmente evidências neurocientíficas.

Os exemplos de comportamento de invertebrados que discutimos aqui são os que se esperaria de um ser consciente, guardando muitas semelhanças com as capacidades apresentadas por aves e mamíferos. Isso fornece um guia para mostrar como é possível que os invertebrados tenham um estado interno consciente. No entanto, o fato de que esses indicadores comportamentais podem ser replicados até certo ponto em robôs mostra que sua presença não significa que a senciência possa ser assumida sem investigação adicional. A diferença entre robôs e invertebrados é fundamental ao considerar esses princípios opostos. Animais invertebrados são organismos biológicos com uma relação evolutiva com outros animais, como os humanos, aos quais já atribuímos senciência. Saber que a senciência está presente nesses animais, como os humanos, e saber que a experiência consciente é a base para comportamentos humanos que são espelhados até certo ponto por parte de invertebrados, fornece uma razão para considerar que pelo menos alguns invertebrados têm a capacidade de experiência consciente, mesmo que isso ainda não possa ser definitivamente verificado.

Estado da literatura comportamental e escopo para pesquisas futuras

Embora tenham ocorrido vários estudos icônicos observando os comportamentos de invertebrados que estabeleceram um precedente neste campo, a profundidade desses estudos é carente, sendo a maioria desses experimentos recentes. A maioria dos estudos na literatura cobre apenas um punhado de organismos. No entanto, a gama de invertebrados é tão grande que uma maior variedade de táxons observados e testados permitiria uma melhor compreensão das tendências na complexidade do comportamento em diferentes táxons. Além disso, observar o comportamento dos invertebrados por si só não pode fornecer uma resposta definitiva sobre se eles são o não sencientes. Mesmo os indicadores de experiência consciente utilizados ​​neste ensaio são ainda insuficientes para provar a senciência. Uma base maior de comportamentos de invertebrados permitirá uma comparação mais precisa entre eles e os animais que assume-se que são sencientes. Quanto mais próximos seus comportamentos estiverem do que se espera de animais sencientes, mais plausível será a afirmação de que eles também são conscientes.

A posição moral sobre que tipo de consideração moral dar aos animais invertebrados depende de respondermos à questão: os invertebrados são sencientes? No entanto, se isso não puder ser respondido definitivamente, diferentes abordagens podem ser aplicadas. Uma delas, o cânone de Morgan25, afirma que a presença de estados psicológicos – a capacidade de ter uma experiência consciente e emocional – não deve ser assumida se uma explicação ou mecanismo mais simples puder ser apresentado. De fato, o parágrafo acima descreve como isso é possível, citando como comportamentos que potencialmente indicam estados emocionais podem ser imitados na programação de robôs. Outra abordagem, o princípio da precaução26, sugere que devemos errar pendendo para fornecer proteção e consideração moral a um grupo de animais se houver alguma razão para considerá-los sencientes. Outra abordagem ainda é a bayesiana, que considera as consequências esperadas de se assumir ou rejeitar a senciência de invertebrados em relação à probabilidade de que eles sejam sencientes. Se tais probabilidades não forem desprezíveis, então a enorme quantidade de danos que os invertebrados poderiam sofrer por não receberem consideração moral tornaria o argumento para considerá-los muito forte. Se, como vimos aqui, tais probabilidades são muito altas, então o argumento para dar consideração moral aos invertebrados se torna ainda mais forte. As duas últimas visões são cada vez mais apoiadas por algumas pessoas que são céticas em relação à senciência de invertebrados por motivos neurológicos27. Isso pode ser devido à disseminação do respeito pela ideia de senciência de animais não humanos em geral.


Leituras adicionais

Alupay, J. S.; Hadjisolomou, S. P. & Crook, R. J. (2014) “Arm injury produces long-term behavioral and neural hypersensitivity in octopus”, Neuroscience Letters, 558, pp. 137-142.

Birch, J. (2017) “Animal sentience and the precautionary principle”, Animal Sentience: An Interdisciplinary Journal on Animal Feeling, 2 (16) [acessado em 21 de maio de 2021].

Birch, J. (2018) “Degrees of sentience?”, Animal Sentience: An Interdisciplinary Journal on Animal Feeling, 3 (21) [acessado em 15 de maio de 2021].

Czaczkes, T. J.; Koch, A.; Fröber, K. & Dreisbach, G. (2018) “Voluntary switching in an invertebrate: The effect of cue and reward change”, Journal of Experimental Psychology: Animal Learning and Cognition, 44, pp. 247-257.

Dawkins, M. S. (2006) “Through animal eyes: What behaviour tells us”, Applied Animal Behaviour Science, 100, pp. 4-10.

Duncan, I. J. (2006) “The changing concept of animal sentience”, Applied Animal Behaviour Science, 100, pp. 11-19.

Giurfa, M. (2013) “Cognition with few neurons: Higher-order learning in insects”, Trends in neurosciences, 36, pp. 285-294.

Jachner, A. (2001) “Anti‐predator behaviour of naïve compared experienced juvenile roach”, Journal of Fish Biology, 59, pp. 1313-1322.

Mather, J. A. (2016) “An invertebrate perspective on pain”, Animal Sentience: An Interdisciplinary Journal on Animal Feeling, 1 (3) [acessado em 21 de abril de 2021].

Mather, J. A. & Dickel, L. (2017) “Cephalopod complex cognition”, Current Opinion in Behavioral Sciences, 16, pp. 131-137.

Mendl, M.; Paul, E. S. & Chittka, L. (2011) “Animal behaviour: Emotion in invertebrates?”, Current Biology, 21, pp. R463-R465 [acessado em 15 de abril de 2021]

Oshima, M.; Treuheim, T. P. von; Carroll, J.; Hanlon, R. T.; Walters, E. T. & Crook, R. J. (2016) “Peripheral injury alters schooling behavior in squid, Doryteuthis pealeii”, Behavioural Processes, 128, pp. 89-95.


Notas

1 Scanes, C. G. (2017) “Invertebrates and their use by humans”, in Scanes, C. G. & Toukhsati, S. R. (eds.) (2017) Animals and human society, London: Academic Press, pp 181-193.

2 Bar-On, Y. M.; Phillips, R. & Milo, R. (2018) “The biomass distribution on Earth”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 115, pp. 6506-6511 [acessado em 25 de julho de 2019].

3 Scanes, C. G. (2017) “Invertebrates and their use by humans”, op. cit.

4 Ibid. Mais tecnicamente, a natureza discreta e pessoal da experiência consciente significa que alguém pode demonstrar para si próprio que é senciente por meio da introspecção de seus próprios estados fenomenológicos.

5 Ibid.

6 Rethink Priorities (2020 [2019]) “Invertebrate sentience table”, Rethink Priorities, February 5 [acessado em 26 de julho de 2020].

7 Bartha, P. (2019) “Analogy and analogical reasoning”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, Jan 25 [acessado em 27 de maio de 2019].

8 Klein, C. & Barron, A. B. (2016) “Insects have the capacity for subjective experience”, Animal Sentience: An Interdisciplinary Journal on Animal Feeling, 1 (9) [acessado em 3 de maio de 2021].

9 Maák, I.; Lőrinczi, G.; Le Quinquis, P.; Módra, G.; Bovet, D.; Call, J. & d’Ettorre, P. (2017) “Tool selection during foraging in two species of funnel ants”, Animal Behaviour, 123, pp. 207-216.

10 Finn, J. K.; Tregenza, T. & Norman, M. D. (2009) “Defensive tool use in a coconut-carrying octopus”, Current Biology, 19, pp. R1069-R1070 [acessado em 18 de fevereiro de 2021].

11 Ibid.

12 Berridge, K. C.; Robinson, T. E. & Aldridge, J. W. (2009) “Dissecting components of reward: ‘Liking’,‘wanting’, and learning”, Current Opinion in Pharmacology, 9, pp. 65-73 [acessado em 14 de fevereiro de 2021].

13 Anderson, D. J. & Adolphs, R. (2014) “A framework for studying emotions across species”, Cell, 157, pp. 187-200 [acessado em 12 de janeiro de 2021].

14 Bateson, M.; Desire, S.; Gartside, S. E. & Wright, G. A. (2011) “Agitated honeybees exhibit pessimistic cognitive biases”, Current Biology, 21, pp. 1070-1073 [acessado em 20 de março de 2021].

15 Perry, C. J.; Baciadonna, L. & Chittka, L. (2016) “Unexpected rewards induce dopamine-dependent positive emotion–like state changes in bumblebees”, Science, 353, pp. 1529-1531.

16 Anderson, D. J. & Adolphs, R. (2014) “A framework for studying emotions across species”, op. cit.

17 Adamo, S. A. (2016) “Do insects feel pain? A question at the intersection of animal behaviour, philosophy and robotics”, Animal Behaviour: An Interdisciplinary Journal on Animal Feeling, 118, pp. 75-79.

18 Cartmill, M. (2020) “Do beetles have experiences? How can we tell?”, Animal Sentience, 5 (29) [acessado em 14 de janeiro de 2021].

19 Kacsoh, B. Z; Bozler, J. & Bosco, G. (2018) “Drosophila species learn dialects through communal living”, PLOS Genetics, 14 (7) [acessado em 15 de fevereiro de 2021].

20 Su, S.; Cai, F.; Si, A.; Zhang, S.; Tautz, J. & Chen, S. (2008) “East learns from West: Asiatic honeybees can understand dance language of European honeybees”, PLOS ONE, 3 (6) [acessado em 13 de abril de 2021].

21 Ibid.

22 Franks, N. R. & Richardson, T. (2006) “Teaching in tandem-running ants”, Nature, 439, pp. 153-153 [acessado em 22 de dezembro de 2020]

23 Ibid.

24 Hanlon, R. T.; Naud, M.-J.; Shaw, P. W. & Havenhand, J. N. (2005) “Transient sexual mimicry leads to fertilization”, Nature, 430, p. 212 [acessado em 29 de dezembro de 2020].

25 Allen-Hermanson, S. (2005) “Morgan’s canon revisited”, Philosophy of Science, 72, pp. 608-631.

26 Jones, R. C. (2017) “The precautionary principle: A cautionary note”, Animal Sentience: An Interdisciplinary Journal on Animal Feeling, 2 (16) [acessado em 14 de janeiro de 2021].

27 Cartmill, M. (2020) “Do beetles have experiences? How can we tell?”, op. cit.

i Nota do tradutor. O problema difícil da consciência consiste em explicar por que e como há seres que possuem experiências fenomenais. Os “problemas fáceis” consistiriam em explicar os sistemas físicos que dão a nós e a outros animais a capacidade de discriminar, integrar informações etc. São considerados problemas “fáceis” porque tudo o que é necessário para sua solução é especificar os mecanismos que executam essas funções. São diretamente suscetíveis ao método padrão da ciência, por meio do qual um fenômeno é explicado em termos de mecanismos. Os problemas difíceis são aqueles que parecem resistir a esses métodos. Por exemplo, Chalmers defende que mesmo depois de resolvermos todos os problemas fáceis, o problema difícil ainda persistirá. Ver Chalmers, D. (1995) “Facing Up to the Problem of Consciousness”, Journal of Consciousness Studies, 2, pp. 200-219.

ii Nota do tradutor. Aphaenogaster é um gênero de insetos pertencente a família Formicidae que constroem ninhos densos e conspícuos, cujas entradas são geralmente em forma de funil, o que resultou no nome comum de formigas de funil. Ver RICHARDS, P.J. (2009) “Aphaenogaster ants as bioturbators: impacts on soil and slope processes”, Earth-Science Reviews, 96, pp. 92-106.

iii Nota do tradutor. Refere-se ao à espécie Amphioctopus marginatus. É chamado de polvo venoso porque apresenta um padrão de cor típico com linhas ramificadas escuras semelhantes a veias. Também é conhecido como “polvo do coco”.

iv Nota do tradutor. Probóscide é um apêndice alongado que se localiza na cabeça de algumas espécies de animais.

v Nota do tradutor. Teorias de ordem superior da consciência postulam que a consciência consiste em percepções ou pensamentos sobre estados mentais de primeira ordem. Afirmam que a consciência fenomenal é uma representação de ordem superior de conteúdos perceptivos, como imagens visuais. Distinguem-se de outras explicações da consciência que sugerem que a mentalidade meramente de primeira ordem constitui a consciência. Para um exemplo, ver Carruthers, P. & Gennaro, R. (2020 [2001]) “Higher-order theories of consciousness”, in Zalta, E. N. (ed.) The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Sep 2 [acessado em 07 de abril de 2022].